TRAVESSIA
Teresa Maria de Magalhães Araújo
 
 

Viajavam há quatro dias. Ora um, ora outro agarrava o volante. A rodovia cheia de buraco e pedregulho, desenhava curvas, entre montanhas. Muitos caminhões, tensão e cansaço. Numa bifurcação, um título provocou o riso: Bar chove lá fora, aqui dentro só pinga. Em alguns trechos, bom asfalto e excelente sinalização. Cantavam. Hora de aplacar a ansiedade. Alternavam com histórias leves. Ela possuía senso de direção, mais que ele, o homem da dupla. Por vezes, fugia dali, engolfava-se em lembranças: o pai dirigindo em direção à fazenda, falava poeticamente sobre os olhos tristes das vaquinhas que se enfileiravam, uma contígua à outra, vendo os homens que passavam. Um boi vê os homens! O cheiro de mato com esterco sempre lhe lembraria a meninice. Tinha terra no sangue. Trôpegos como se estivessem bêbedos, desciam para urinar. As pernas meio dormentes. Que delícia o alongamento da coluna vertebral. O barulhinho – clec-clec - do pescoço ao girar a cabeça. Espreguiçavam.

Pausa para.

O cafezinho honesto esquentava o peito e reavivava os ânimos. Pão com queijo quente.

- Paula, aqui tem chuveiro!

-Eu vi, vou ao carro pegar toalhas.

O banho era o perdão para a canseira. Refeitos, retomavam o caminho. Mudavam o gênero musical. Sorriam renovados. À noite, paravam para dormir em hoteizinhos de beira de estrada. Lençóis ásperos, cheiro de sabonete barato. Música ruim. Cerveja quente. Não se importavam. Faziam amor e adormeciam felizes. Um nos braços do outro. O acordar, no quinto dia, não causou estranhamento. Todos os motéis se parecem. A idéia de que estavam próximos do destino animava-os.

-Gabriel, faltam apenas 400 quilômetros, sorriu Paula.

- Não demora, estaremos lá.

O cenário, nesse trecho, era diferente. Quase triste. O verde rareando, as montanhas também. Andarilhos. Vez ou outra uma carroça, na rodovia. Olha o perigo! Ele tomou a direção do carro. Hoje apenas eu dirijo. Coisa de homem. Ela não discutiu, poderia mergulhar nas lembranças de novo. O pai, as vaquinhas, o intróito da existência. Colocava-se no lugar dos bois, via a si mesma. Coitados, dir-se-ia que não escutam nem o canto do ar nem os segredos do feno, como também parecem não enxergar o que é visível e comum a cada um de nós, no espaço. O canto do ar... Não, não ouvia. Drummond tinha razão. Adormeceu. Sonhou com a mãe trocando fraldas do pequenininho que nascera. Despertou com a voz do locutor de rádio dando notícias sobre a região: Dizem os especialistas que a aridez da região influencia negativamente o espírito da população e dá banzo nos habitantes.

- Ouviu isso, Gabriel?

- Sim, querida.

- A notícia me deu sede. Passa a água?

Ele estacionou o carro.-- Chi, esquecemos a água no quarto do motel.

- Não faz mal. Olha ali, a placa indica que Mara Rosa está próxima.

Continuaram. A paisagem era um descampado. Largado. O solo vermelho, a aridez quase desértica da vegetação. O céu azul, sem nuvens. Anteviam-se na casinha circundada por varandas, com muitas redes e sombra, água corrente barulhando nas pedras; fincariam pé na moleza e no balanceio da rede. Uma nostalgia miúda ameaçou se instalar. Nos dois, de uma vez. Multiplicada. Novamente, lembrou-se do poema do Drummond: Ficam tristes e no rasto da tristeza chegam à crueldade. Espantou a melancolia:

- Amor, será que demoramos a chegar?

- Espero que não, beberia um rio de água. Paramos um pouco para alongar os músculos?

O ruído do motor cessou. Desceram. Nenhuma árvore, apenas secura. E silêncio. Espesso. Sentiram um mal-estar. Garganta seca, ouvidos áridos. O vazio dentro e fora. Ela sussurrou – hum. O murmúrio rarefez-se. Melhor ir embora, correr dali, antes-que. Retornaram ao carro, ele pisou fundo o acelerador A máquina começou a falhar. Paula sentiu náusea, mas estava muito seca para vomitar. Novamente a placa indicando Mara Rosa. Depois da terceira curva, umas casinhas se anunciaram. Eram quatro. Um homem de cócoras fazia um cigarro de palha à beira da estrada. Por favor, onde fica a cidade Mara Rosa? É aqui, respondeu com lerdeza e preguiça.

Aqui? Pensaram juntos. Que fim de mundo!

Mara Rosa,
Mara rasa.
Maria Rosa, meu primeiro amor,
cantarolou Gabriel.

Na terceira casa, a placa: Pensão da Tonha. Aboletaram-se. Água fresca da moringa. Ah ! Melhor que cerveja gelada.

- Tarde, Tonha é a senhora dona?

- Sim, sinhô, eu mesma. Nome de batismo. Tonha de Sousa, dona e cozinheira. Era mulher simples, mas se orgulhava de ter estudado. Gostava de pronunciar bem as palavras.

- A senhora poderia preparar um franguinho com arroz? Viemos de longe e a fome faz buraco no estômago.

- Frango tenho não. Só pego galinha no galinheiro, depois que escurece. Mas tem uma carne pronta, arroz soltinho.

- Que seja, a fome é muita.

Ela serviu uma carne escura, quase preta, em forma de bola. Os dois nem perguntaram o que era. Sôfregos, devoraram tudo. O quarto era muito simples e limpo. Lençóis de chita, os mais crespos que encontraram durante a viagem. O banho de caneca. Fizeram amor e dormiram felizes. Um nos braços do outro. Quando Paula acordou, a cama estava vazia. Um pensamento funesto assaltou-a. Ah, que besteira, pensando bobagem. –Gabriel, Gabriel? Levantou-se apressada. No corredor, encontrou Tonha varrendo o chão de terra batida.

-Viu meu companheiro, dona?

-Ele pediu que avisasse a senhorinha, que ficasse sossegada. Pegou uma carona e foi à fazenda mais próxima procurar socorro, alguém que conserte o carro de vocês. Tem um moço lá que recupera os tratores.

- É longe? Estranho ele não me chamar, pensou.

- Meio perto, meio longe. Prometeu voltar logo, para seguirem viagem. Tem café no bule. Pão caseiro e manteiga. A senhora se serve?

Paula achou o café bom. Forte. O pão caseiro delicioso. Comeu com gosto e retornou ao quarto. Nenhum som, além da passarinhada. Tinha livros na mala. Relaxou. Acomodou-se e abriu os Cem anos de solidão. Ia ler pela terceira vez. Antes da vigésima página, caiu no sono, sonhou com os Buendías, o emaranhado de Aurelianos. Macondo.

Almoço. Jantar. Café da manhã. Angústia. O dia anoiteceu. Amanheceu de novo. Gabriel ausente. Paula preferia o outro caminho, o limite da fadiga, a este tão doloroso. Nada lhe restava fazer senão ler - uma forma de esperar. Entretanto, na primeira frase, os pensamentos vagavam. As palavras, um emaranhado. Firmava os olhos e tentava de novo. Impossível concentrar-se. Andava pela casa, via a rua. O homem de cócoras pitava seu cigarrinho de palha. Eta vida besta, meu Deus . O sono entrecortado por pesadelos. Vieram para se casar, morar numa fazendinha que o avô lhe deixara de herança. Quimera. A expectativa da casa avarandada. Uma semana depois, chegou à pensão o dono das terras vizinhas. Tonha, que acompanhava o desalento da moça, correu para perguntar sobre Gabriel.

–Não, ninguém apareceu na fazenda pedindo ajuda.

A noiva não dormira um segundo. A noite era travessia escarpada. Tinha olheiras fundas e princípio de pânico. Sozinha, procurava energia no café preto, sentada à mesa do canto. Ao ouvir o diálogo, interrompeu os dois:

- Como? Não apareceu nenhum estranho na sua fazenda?

-Não, mocinha. Há mais de um mês, nenhum desconhecido pisa minhas terras.

Paula viu seus sonhos se desmanchando como a fita de um filme que se rompe. Longe de tudo, sem telefone, sem carro. Gabriel desaparecido? Desfaleceu. Quando voltou a si, estava no hospital. O pai e a mãe à beira do leito.

 
 
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