O
TREM
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Paula
Cury
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Seria difícil acompanhar estes trilhos se este trem não me fosse tão familiar. Não sei bem quando entrei num vagão já meio perdido no final do corrimão. Sei apenas que estou como sempre estive a pular vagões. O destino? Ah, isso também não sabia como continuo não sabendo. Ou será que já vislumbro alguma estação no meio do caminho? Não sei. Na verdade olhava os outros como se nenhum deles pudesse responder com clareza o que martelava minha cabeça nessas coisas de direção e paradas. E, por assim dizer fui crescendo em altura até me tornar tão grande que precisava andar curvada para não bater a cabeça no teto do vagão lotado de lustres meio pontiagudos. Todos os outros eram tão diminutos e cada dia menores que já não conseguia distinguir um dos outros sem ter de colocar na cara os óculos já um tanto embaçados. Vagueei pelos vagões (o que me parece bem acertado em ser a única coisa a se fazer em vagões. Vaguear.) Talvez tenha pisado em uns tantos ou carregado uns outros tantos nas costas ou dependurados no sapato. Já não os via. Era apenas tênue massa de névoa pairando sobre-sob meus pés, como dias de Fog em Londres e nunca estive lá. Ah, sim. Não posso esquecer. Enquanto os dias passavam, eu já havia me tornado tão grande que minha envergadura acompanhava exatamente os contornos do vagão, pensei até que se crescesse mais meus braços só teriam espaço para fora das janelas enquanto as pernas sairiam pelas portas laterais. O que mais incomodava era a cabeça cada vez mais próxima ao peito quase numa curvatura de 170º graus e meus olhos só enxergavam meu umbigo onde uma família completa e mais dois cachorros haviam se abrigado e brincavam de pula-pula provocando espasmos de cócega e eu já não tinha como me coçar. É certo que já havia crescido tanto que não tinha como sair do vagão. Na verdade eu já era um vagão completo. Sentia que muitas pessoas me entravam, subindo pela língua que de tão grande já não cabia dentro da boca que precisava estar sempre aberta para não sufocar. Na polpa dos dentes dormiam casais. Outros faziam sexo desesperadamente nos canais que latejavam tanta dor que das lágrimas que escorriam meus olhos fizeram um parque aquático onde velhas gordas e seus maiôs pretos extra-decentes mergulhavam minha íris sem a preocupação em me cegar. Minhas narinas viraram gêiseres gratuitos. Fonte da vida eterna. Os ouvidos como não deixariam de ser eram agora banheiros públicos com filas intermináveis de cagões. Por um momento pensei em rir ao me ver virar megalópole invadida por ianques em todos os buracos e saliências. Por sorte, minha posição impediu que se me entrassem pelas vias anais, embora seja indescritível o que fizeram dos caminhos que levavam até o vulcão que de quando em quando cuspia sangue. Das primeiras vezes que senti invadirem minhas entranhas tive sérios orgasmos que fizeram terremoto àquele povaréu. Acreditei não ser tão ruim aquela posição já que gozava sem ter o trabalho de seduzir. Mas como tudo e com o tempo tive vontade de dizer que naquele dia não queria, pois a cabeça doía ou já estava tarde ou qualquer desculpa para dormir sossegada. Em vão. Violentavam minha vontade sem ao menos um dá licença e isso também me incomodou. Já não podia falar, pois a língua dava voltas e voltas em si mesma parecendo um caracol avermelhado e pela primeira vez engasguei e o corpo inteiro tossiu descarrilando o vagão que rolou por algum penhasco que não deveria estar no caminho. Rolava e despedaçava a cada toque nas pedras fazendo voar gentes e dentes. Devo ter batido a cabeça em algum lugar porque perdi os sentidos. Quando acordei estava deitada na mini-cama-banco do vagão leito que corria trilhos em leves solavancos. Na boca o gosto amargo de cerveja e vômito. Sobre o corpo e quase em todos os lugares, formigas caminhavam apressadamente. De onde surgiram? Espera. A pergunta é: Para onde estou indo? |