O LONGO CAMINHO QUE LEVA A BUDAPESTE
Leila Silva Terlinchamp
 
 

[Bélgica – o começo da viagem]

Humores alterados. Malas rápidas. M. sem trousse de toilette, só escova de dentes. Única voz no carro, Otis Taylor que canta Truth is not fiction. Não? O caminho será longo, mas a citröen é très confortable e os discos são muitos. O grafite, esse, pode acabar e o apontador ficou esquecido em cima do escritório.

Um exercício bom de se fazer em viagem é pensar numa cidade e deixar que algo relacionado a ela venha naturalmente à cabeça. Poderia propor o joguinho a M. e P., quem sabe o clima não melhora? Ou piora? Por exemplo, Praga igual a Kafka, Barcelona igual a Gaudí, Viena igual a Freud, Dublin igual a James Joyce e assim vai. Algumas cidades se prestam mal ao exercício pois são tantas as coisas que vêm ao espírito que não fica nada em específico: Londres, Paris…

Budapeste é engraçado, o primeiro nome que me veio foi Chico Buarque e depois Paulo Rónai. A ordem deveria ser inversa mas não depende da razão, é a atualidade falando mais alto.

15 horas [Bélgica ainda]

Coníferas e nuvens. Silêncio entre os passageiros. Mesmo disco.

15:30 – Alemanha

M. reclamou que o cd já rodou muito tempo. A DJ vai trocar, agora com vocês Marisa Monte, seu primeiro disco. [I heard it trough the grapevine….]

E CCR. Silêncio persistente no carro.

E The Kingston Trio. P. soltou uma frase, disse que a França está logo ali, atrás da Forêt Noire, l’Alsace.

18:40 Como criança que está aprendendo a ler, leio todas as palavras em alemão que vejo nos caminhões, nas placas e P. tem que dizer se a pronúncia está certa. Deve ser chato pra ele.

Passamos por uma Trabbant e P. se entusiasma. Nostalgia do Oriente.

19:30 Baviera – Parte católica da Alemanha.

A questão de ordem é: que campo de concentração visitar?

Parada para um sanduíche frio e sem graça. O meu é constituído de queijo, presunto, uma rodela de pepino e uma folhinha de alface.

Rosenheim – a cidade da alemã de Bagdá Café. Aqui vamos dormir num hotelzinho simples e limpinho.

16/07

9:30 Terminando o café da manhã: pãezinhos quentes, queijo, presunto, suco (?), café com leite.
As torres das igrejas cristãs me fazem pensar em minaretes.

10:30 Austria – Salzburgo. Visita relâmpago. Havaianas nas vitrines a 20 euros, 25 com bandeirinha brasileira, 30 com plataforma.
Visita à igreja de estilo barroco.

14:10 Caça ao almoço, tarde demais para os padrões austríacos. Somos servidos de má vontade. Pizza (Pizzera Rimini). Procurando pelos toilettes, quase fui dar nos quartos dos proprietários. Estamos em Linz, cidade onde Hitler nasceu. E lembro, sem razão aparente, que hund é cachorro em alemão, é o nome do animal mecânico em Farenheit 451.

15:00 passando pelo Danúbio que, Segundo M. está mais para verde do que para azul.

M. escolheu visitar o Campo de concentração e extermínio de Mauthausen. (Memorial). Não tenho vontade de comentar, nada pode dar a dimensão de um erro tão grande, nem mesmo a visita a este campo agora limpo e preparado para os curiosos ou os que querem preservar a memória ou os que tentam entender. Eu também tento entender, também penso que a memória deve ser preservada para que os erros do passado sejam evitados. E são? Os americanos se gabam de que ajudaram os europeus a vencer o nazismo, por exemplo. Sei lá…tudo é triste.

Outra coisa terrível: acreditei que não fosse capaz de entrar numa camera de gaz. E fui. Muita gente lá dentro escutando histórias, pensando, como eu, imaginando os corpos magros se jogando contra aquela porta, pisoteando o amigo, gritando e morrendo como nenhum animal merece morrer, grudados uns aos outros, transfigurados. E penso que morte não é a pior das coisas, é o ‘como se morre’. Tanta coisa a ser suplantada para viver!

Perto de Viena, uma lavoura de girassóis.

[Luiz Gonzaga no som]

Hotel Ibis. Jantar (muito). Passeio perto do hotel. Cansados nos concentramos num filme francês na TV5 só para nos decepcionarmos no final. (bosta de filme!)

17/07 VIENA

10:00 café da manhã. Eu e M. não entendemos nada do cardápio, deixamos que P. escolha. Feito crianças.

Eu e M. visitamos o Museu Leopold: Anton Kolig, Herbert Boeck, Hans Böhler, Robert Kohl, Jean Egger, Egon……e depois a cidade. Meus pés doem muito. Adoro ver esses espetáculos bobos na rua: gente se fazendo de estátua, aqui, no caso, temos um Motzart. Mais na frente um casal se equilibra, dança….estão em lua de mel, disse ele se apresentando e recolhendo o dinheiro.

Noite: Jantamos num restaurante italiano. Cedo para tentarmos dormir mas amanhã tomamos o trem antes das seis para Budapeste. Faz calor e eu me esqueci das sandálias.

Tento escrever um conto, queria partir de uma personagem chamada Stella, como em Um bonde chamado desejo. Tenho um nome mas não tenho uma história. M. lê, P. também lê e eu também vou ler.

Domingo em Budapeste

18/07 Levantamo-nos às 5:30 e tomamos o trem para Budapeste. Tivemos que deixar o carro em Viena e tomar o trem porque o seguro não inclui a Hungria.

No caminho, campos e campos de girassóis, milharais…Ao meu lado um cara redondinho, todo vestido de preto, dorme e ronca.

Já fomos controlados 4 vezes: 2 vezes o passaporte e duas vezes o bilhete.

8:40 Paramos em Györ, muitos passageiros sobem, temos duas novas companheiras, uma garotinha e a mãe. Vou prestar atenção na língua que falam.

O Danúbio agora é Duna. Não se usa Euro.

15:30 Visitamos, almoçamos, agora descansamos deitados na grama em frente ao Hotel Four Seasons, um prédio magnífico, e rimos. Muito calor.

Depois do descanso visitaremos Peste. Músicos tocam sob o sol terrivelmente quente, P. deitado na grama, dança o pé. Um rapaz, do outro lado da rua dança animado e bate palmas, aproveita o ritmo e bate na bunda de uma moça do grupo que leva um susto. Os meus, agora dormem. A música lembra os filmes de Kusturica, sobretudo Black cat White cat.

Peste. Festival de Cinema Húngaro, em frente ao parlamento, dois telões. Eu e M. assistimos uma parte do filme em preto e branco e em Húngaro. Ninguém ri.

À noite voltamos para Viena, pegamos o carro e vamos procurar um hotel na Estrada. Só encontramos um às três da manhã, ainda na Áustria.

12:20 Atravessamos Munique (Münch)

Almoço em Ulm (15:18)salada. Visita a igreja-mosteiro. Crianças italianas contrariam a ordem e pegam as moedas de um mendigo que, ajoelhado, estendia o seu chapéu. Não resta outra alternativa ao pobre homem senão rir daqueles capetinhas….os pais aparecem irritados e envergonhados. Isso não nos impede de rir.

Caminho: vaquinhas brancas, rolos de feno, reatores nucleares.

Home sweet home.