VIAGEM
AO INTERIOR
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Flávio
Martins
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Estou um ser periférico, deslocado do mundo real e sinto-me perdido num labirinto cretino. Minha vida é um caleidoscópio mas sobrevivo de desbotadas lembranças. Minha mente é seccionada em duas e tenho dificuldade em me entender. Criei uma sub-língua mental para me comunicar com um Eu que eu mesmo descobri. Esse eu é meu amigo e meu inimigo, eu o amo e o odeio. Somos dois e somos um, Abel e Caim, bem e mal, sim e não. Gêmeos da mesma placenta, quase siameses. Se um lado meu é superficial, o outro é profundo, visceral e sobrevive à minha revelia. Há poucas pessoas com quem mantenho contato. Durkheim, Freud, Borges e Eu. Sei ler em vários idiomas, mas o alemão revolve minha alma. Meu único hábito é a leitura, às vezes me entrego à contemplação. O meu outro ser, aquele que está em meu corpo, é amante da música. Meu mundo se resume a um quarto e sala, um banheiro, uma pequena biblioteca e um jardim nos fundos da casa. Morei em vários lugares, mas meu canto preferido é Intuí. Meu habitante, vou chamá-lo X, perdeu a capacidade de falar, mas se comunica comigo no inconsciente. Tem um gato, um canário e já morou em Barbacena. Quando deixei minha casa e fui morar comigo mesmo, minha mãe cuidava de um fantoche que pensava ser um filho. Meu pai a trocou por meu tio, depois se suicidou. Das lembranças que minha mãe me deixou, a que mais aprecio é a gaiola onde guardo minhas fotos. Passo horas observando-as. Por vezes me surpreendi em monólogo regurgitando poemas de Pessoa que nunca li, mas sei que são dele. X acha que sofro de esquizofrenia, mas ele é egocêntrico demais pra conhecer minhas verdades. A biblioteca é meu Éden e passo horas cheirando meus livros. X acha isso repugnante, prefere se deitar na rede que habita o jardim e ouvir Bach. X ainda insinua que sou um relapso, um degenerado. Ele, que em outra vida foi um caçador, é discípulo de Baco e ama as mulheres. X é impulsivo, diz que tem ânsia de viver, mas é egoísta. Ás vezes, simplesmente ignora minha presença e passa horas inerte, absorto. Eu não sou impulsivo, mas tento estar racional. Demoro dias para tomar uma decisão. Com o passar dos anos, X tornou-se indecifrável. Passa muito tempo narrando mentalmente caçadas que fizera no passado. Isso me assusta. Acho que ele era tão violento quanto um gladiador. Cismo até que gostava de ver sangue. Temos dois quadros em casa. O grito e A persistência da memória. Amamos esses quadros e embora tenham características estilísticas bem diferentes, descobrimos que ambos sintomaticamente nos representam. Há vezes em que X quer se livrar de mim e evoca Münch olhando o quadro. Ele acha que há algo querendo sair daquela figura retorcida. Metáfora. Algo que quer se libertar. X já tentou o suicídio, mas eu impedi. Não posso permitir que se vá. Somos co-existentes. X é carne da minha carne. Somos areia e deserto. Recipiente e conteúdo, cada um a seu tempo. Um dia, ao me barbear em frente ao espelho, notei que X estava estranho. Eu molhava o rosto e X afiava a navalha. Era sempre assim. Barbear era um ritual no qual cada um de nós tinha uma função, como um ato comunitário. Ouvíamos o epílogo das valsas nobres e sentimentais de Ravel e X tremia muito, parecendo nervoso. Súbita e determinadamente, X tomou a navalha na mão direita, levantou meu rosto com a mão esquerda e se degolou num único golpe. |