O ENJÔO DA GAIVOTA
Eduardo Prearo
 
 

Meu bisnetinho Kelvin ama de verdade brincar no cais. Outro dia, acho que foi em uma soturna quarta, adentrou sorrateiramente em um navio ancorado, encantando toda a tripulação. Era um dos meus velhos navios, o Pamela XXXVI. Anteontem, eu e Kelvin fomos ao cinema assistir a um filme proibido para menores, um drama. O menino chorou de tanto rir. Eu jamais consegui rir espontaneamente em salas de cinema ou de teatro. Não me sinto ancião, apesar das minhas oitenta e uma primaveras. Kelvin tem seis e mora comigo. Perspicacíssimo, tem bons conhecimentos de astrologia...

--- Bisavô George, como está a sua sétima casa? Você é um tanto ou quanto solitário.

--- Tem Urano. Atraio mulheres evoluídas, avançadinhas.

--- E o seu Saturno está bem?

--- Sem aspectos, nada.

--- Bisavô George, as pessoas irresponsáveis têm geralmente Saturno sem aspectos.

--- Que disparate, meu pequetito. Olhe este relógio de pulso cheio de diamantes negros, fruto de trabalho com uma super-responsabilidade.

--- Dá-lhe prazer blasonar sua riqueza?

--- Não acho meus prazeres medíocre, caro.

Eu nunca pus um cigarro na boca, não bebo e não como nenhum tipo de carne. Piotri X., meu estranho escudeiro, peguei-o saboreando uma carne de peixe no mês passado. Problema dele, não é?, que vive insistindo para que eu ajude os excluídos, que vive reclamando do seu salário, que tem ciúme doentio do meu bisneto, minha prioridade. Piotri X. tem setenta anos e está comigo há quinze. Parece gay, mas não é; possui traços femininos, porém isso não é inaceitável.Teve uma crise de histerismo a algum tempo atrás e arrancou os cabelos, ficando calvo para sempre. Já meu Kelvin foi preterido pela própria mãe, uma meretrícula nordestina que se assustou com a precocidade do garoto. Esqueceu-se dele e hoje vive na Paris que sempre existirá. Vez ou outra ligo para ela, mas sei quando as pessoas não querem muita conversa comigo por telefone. Um saco. Agora são exatamente quinze horas e três minutos e observo Kelvin nadar na piscina. Ele é bem veloz. Sai da água gélida e vem até mim.

--- Bisavô George, não sinto mais a ausência de mamãe. Quero ser uma gaivota, posso ser uma?

--- Claro, Kelvin. Você é uma gaivota.

--- Ah, estou com náusea.

--- Piotri X., voltemos para a terra. Kelvin não se sente bem. Até a costa são três horas de viagem. Acha que agüenta? Uma gaivota jamais se enjoa. Piotri X., seu sem-vergonha, faça este iate andar!

Estou preocupado. Kelvin está tendo convulsões e não sei o que farei. Já anoitece e a lua é verde. Piotri X. leva o menino não sei para onde. Meus olhos estão fixos na lua. Permaneço assim por duas horas, lacrimejo, diviso São Jorge, sinto a iminência de uma desventura súbita. Piotri X., de repente, aparece na minha frente e a barriga congela.

--- Diga, Piotri. O que houve?

--- É Kelvin, sr. O pequeno sucumbiu. Era um fedelho que dava certo trabalho e o sr já tem idade e...

Grito um grito que ecoa por todo o oceano. Alcanço minha arma e atiro em Piotri X. Ele também está morto. Como pude?, sou um assassino. Mas Piotri X. talvez tenha matado Kelvin. Choro um choro silencioso, em pleno alto-mar, a noite caliginosa inteira. Joguei-me no chão e dali não saio mais. Amanhece, avisto gaivotas e a guarda-costeira. Alguém me toca.

--- Bisavô George, seu maluco, acorde! O seu criadinho se suicidou depois de asfixiar-me e de eu ter desmaiado. Olha...olha só muitas gaivotas sobre a gente. Estou bem mas com receio, Nhonhô. Vamos logo, vamos logo embora daqui.