APARELHO
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Rosi
Luna
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- Aparelho. Minha querida, você só deve conhecer aparelho de jantar, diz o cara do partido. - Do que você tá falando? diz ela partindo pra briga. - Olha só sua roupa, sua cara de burguezinha, isso é causa de gente grande e não de menina mimada. - Sou DCE, passo nas classes dando avisos, os alunos me ouvem. Tenho ajudado a causa do meu jeito, me deixa participar. - Não é porque você simpatizou com um cara de boina ou simplesmente acha a cor vermelha bonita que vai se tornar uma de nós. Acorda, não é boa intenção é Intentona, sabe o que é isso? Não é bicho papão, não engole criancinha. Que partido você é? Dos que comem bife de filet mignon todo dia ou dos que andam de carro de luxo. - Não sou de partido nenhum, abre a porta, me mostra o que vocês fazem, não sou uma alienada de minissaia. Não posso ficar parada na frente dessa casa, daqui a pouco chega alguém e podem desconfiar. - Olha para você, é uma bonequinha de luxo, não sabe se movimentar fora do seu castelo cor-de-rosa, não é de gente assim que o partido precisa. - Li muito sobre o partido, quero que as pessoas tenham uma vida melhor, tô preparada, quero ser uma camarada como vocês. - Meu amor ao primeiro sinal de perigo, você vai se esconder embaixo da cama. - Não vou ter medo, posso mudar de nome, exatamente por ter essa capa de boa menina, seria o meu melhor disfarce, ninguém vai achar que justo eu... - Aparelho. Para com isso, que merda, não é aparelho sanitário. É aparelho perigoso, lá tem gente lutando, sabe o que é ter um ideal? - Para de xingar, seu animal, sei o que tem dentro de um aparelho e dentro de um ideal, não sou essa boba que tá imaginando. Fique sabendo que não sou de partido nenhum, vermelho, roxo, amarelo, quero só que as pessoas tenham mais educação e você decididamente não tem. - As pessoas precisam de muito mais do que educação, saiba você sua estúpida que eles não precisam de aparelho de jantar porque não tem o que comer, não tem em que trabalhar, já ouviu falar em miséria na sua escolinha particular de freiras... - Você é mesmo um animal com duas pernas e uma boca suja, e não pense que vai me meter medo. Eu me garanto, abre logo essa porta, porque não quero ser só uma pessoa que respira ar de princesa, tenho sonhos, quero ser uma revolucionária, tenho uma causa, tenho minhas palavras, se não abrir... vou te empurrar e não vai me impedir. -
Menina, sabe mesmo escrever? Quantos anos tem? O que... é muito
nova, datilógrafa profissional aos 15 anos, querendo trabalhar. - Sei escrever sim, tenho a melhor nota em redação, as vezes esqueço os acentos, as vírgulas mas isso você coloca se quiser e tem mais, tenho uma máquina de escrever portátil, trago sem falta. -
Primeira lição garota, fica na sua, nada de envolvimento
por aqui, você é bonita, também está terminantemente
proibido se apaixonar por livro ou por cara barbudo. Amanhã tem
um enterro de um camarada chamado Gregório Bezerra, no cemitério - Vou ver se consigo dar uma desculpa para minha família, não pode ser descarado assim, tem que ter paciência comigo. - Falei que não ia, tinha certeza que ia amarelar, como diria o grande Riobaldo em Grande Sertão Veredas " viver é perigoso" menina. - Animal é mesmo um animal com essa boca vermelha só me dando bronca, caramba, não me dá crédito, peguei esse cartão e tá escrito assim: "Há homens que lutam um dia, e são bons. Há outros que lutam um ano, e são melhores. Há aqueles que lutam muitos anos e são muito bons. Porém há os que lutam toda a vida. Estes são os imprescindíveis". Bertold Brech - Eles me deram no final do enterro o cartão, tem a foto do Gregório aqui. Não importa que não me viu, estive lá até o fim, acho que o Guimarães Rosa tem razão "viver é perigoso" mas gosto disso. E não fica bravo mas preciso te contar, é que fiquei ontem até tarde naquele Aparelho da Casa Amarela e quebrei as regras, me apaixonei por um livro daqueles do buraco da escada. Sinto muito mas não paro de pensar no que li, acho que o autor era um barbudo sim - a cara do Che Guevara. É quase uma revolução esse amor literário, não se preocupe, vou lutar contra isso camarada, prometo! |