ANIMAL HOMEM
Rodrigo Fontes Cabral
 
 

- Talvez seja por instinto, ou por necessidade.

O ar parece não fazer efeito sobre a necessidade. O tempo frio fraquejando o andar manco. A calma para puxar e arrastar passo a passo, calculado, conseqüente e com atenção. Qualquer deslize, desatenção ou algo parecido pode resultar numa queda. Os pés não respondem como antes, as pernas não caminham como antes e tudo isso aconteceu por um acidente tolo. Mas talvez, a rua realmente não fosse o melhor lugar para se andar. Um animal deve se precaver, se resguardar, se proteger.

O cheiro embrulha o estomago de quem passa na calçada. É fétido, sujo, insuportável. O colocar leve da mão ao nariz, o levantar de uma blusa e o colocar da ponta de um casaco. Travar o cheiro é necessário. Impedir que ele chegue as narinas, controle o pulmão, force-o travar a respiração e distribuir o cheiro pelo estomago, que força o cheiro contra o corpo e este se defenda colocando o desespero para fora. Com um vomito rápido e degradante.

O instinto impede qualquer ação do corpo. Impede que enlouqueça, até mesmo em agosto, famoso mês do cachorro louco.

Sentar-se e esperar às vezes é a solução. Pessoas passam. Observam-lhe. Ficam com medo. Atravessam a rua. Mas em vezes esporádicas passam a mão. Fazem carinho, dão atenção. Atenção tão necessária quanto o ar frio que corre ao pulmão. Atenção tão necessária quanto à comida jogada na velha lata de lixo que alimenta o corpo, que deixa a sobrevivência fluir na mente. Que faz o instinto levar até a lata de lixo, para sobreviver como um animal bom.

- Instinto... é instinto mesmo.

O acomodar frente à padaria. Sabe lá tem aquelas máquinas maravilhosas que pode se ficar observando durante horas. Um frango, dois frangos, três frangos, tudo dentro de um espeto enorme, tudo para dentro da máquina. Gira, gira, gira e em breve alguém pede um para comer. Sempre sobra um pedaço, sempre sobra algo e jogar fora não é correto, não com aquele corpo necessitado ao lado. Olhos brilhantes, angustiados e lacrimejados. O pelo simples correndo e faltando. Tapando umas partes e deixando o frio congelar as outras. O corpo magro, magro, muito magro, extremamente necessitado, desejando um pedaço, não todo o frango, ficaria satisfeito com apenas um pedaço.

Uma voz calma e macia. A mão pegando um pedaço. A mão balançando um pedaço, este pedaço vai ser jogado.

- Você quer? - o balançar da pequena cabeça em sim - É claro que você quer.

Um pedaço foi jogado, naquele momento bem pouco alimentado, mas o instinto farejava mais. A necessidade pedia mais. O cansaço pedia mais.

Levantar-se e sair por ai?

Mas como as pernas cansadas e o pelo molhado, tudo atrapalhava, mas instinto desejava. O Olhar fixo na lixeira. Não! Naquele momento ela não seria revirada, o instinto espera mais um pouco e é bem melhor segui-lo, afinal estava vivo por isso.

Como um animal urbano esperava a paciência das pessoas. Se pudesse ser uma pessoa talvez tudo fosse bem melhor, talvez tudo fosse mais fácil. Um ser humano comum com casa, carro, filhos, contas para pagar, impostos, brigas jurídicas, acordar cedo, dormir tarde, se divorciar, se casar, se divorciar, se casar, deixar a vida ser vida e principalmente não precisar ficar ali sentado. Cão sem dono, animal com instinto falido, corpo machucado, desespero num grito, decência deixada de lado a procurar alimento como num garimpo.

Um novo frango foi cortado.

O olhar para cada tesourada, calma, precisa, desmembrando o frango. O olhar para o pegar do rapaz atrás da mesa. Um saco de farofa. A bolsa preta. A madame espera com calma o alimento. A madame olha com desconfiança o seu procedimento. O mexer devagar como para erguesse e pedir mais um pedaço. Quase que uma coxa inteira foi deixada de lado. O sussurrar da madame com o rapaz. Um olhar para vê se o animal continua ali, pedindo, sentindo, um instinto dizendo que ele seria expulso. O jogar do pedaço do alimento. O comer afobado. Um grito desesperado. O gerente que não gosta de nenhum animal tão próximo, ainda mais ali bem ao lado.

- Já falei para você não ficar tão próximo, os clientes não gostam. Vai embora e só volta no fim do dia. Vou deixar um pouco de comida na vasilha aqui na porta ao lado.

O levantar cansado. O arrastar dos pés machucados e mais uma vez o animal homem foi escorraçado.