A
REIMA
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Raymundo
Silveira
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O
Sebite sacou da cintura uma das peixeiras, saltou na minha frente, como
um gato acuando rato e falou com a sua voz de falsete: "te prepara
pra morrer, cabra da peste". Tinha quatro semanas que eu conhecia
o Sebite, quando ele se juntou ao nosso bando por ordem do Carrasco,
que se gabava de conhecer cabra valente à primeira riscada de
faca. Mas eu já sabia de tudo o que era capaz, pois o Macaco
tinha andado com ele no bando do Antônio Silvino e me passou todo
o serviço. Sebite nem se mexeu quando o Carrasco o experimentou,
riscando o peito com a ponta afiada de um punhal. Baixo,
entroncado, idade indefinida, velho precoce ou moço envelhecido
à força. O excesso de peso se devia mais a uma inchação
generalizada do que a gordura. Olhos miúdos e empapuçados.
Precisava se esforçar para manter pelo menos um deles aberto.
A pele amarelada, salpicada de cicatrizes, seqüelas de varíola
ou de outra enfermidade. Cabeça muito grande em relação
ao tronco. O nariz lembrava um chuchu amassado e por debaixo um bigodinho
ralo. Caminhava como um pingüim, pendendo para um lado e para o
outro, à medida que avançava. Usava uma calça cáqui,
um gibão do mesmo pano e calçava sandálias de sola,
com rabicho. Cobria-se com largo chapéu de couro, as abas, alevantadas
feito um Napoleão. No peito, duas cartucheiras cruzadas prenhes
de balas. Nunca menos de duas peixeiras e dois punhais, distribuídos
em torno da cintura e presos ao cós da calça pelas alças
das bainhas. A tiracolo, um rifle, que ele só tirava pra comer,
dormir ou se aliviar. Quem conhece a história até aqui, há de dizer: "O Carrasco era um homem destemido". Não era! Carrasco não temia arma de fogo, peixeira, punhal e nem qualquer homem valente. Mas tremia de medo diante do imponderável, do desconhecido, do sobrenatural, ou, como ele mesmo dizia, "das coisas lá de cima". Quando terminava de matar uma pessoa, esmagava a cabeça entre duas lajes, tirava fora os miolos e depois abria o peito para arrancar o coração, pois disseram que era ali onde ficava a alma, mesmo depois do cabra morto. Enquanto o defunto tivesse miolo e coração o esprito dele podia sobreviver, virar malfazejo... E nem Deus do céu dá jeito em esprito malfazejo. Pouca gente sabia, mas por dentro da túnica, o Carrasco carregava uns escapulários que eram justamente pra afastar espritos malfazejos. Quando o Sebite me desafiou, era alta madrugada. Noite de lua cheia. O Caga-Baixim foi acordar o chefe, que não perdia uma luta de morte ou um homem sangrado, por nada deste mundo. Assistir cena de sangue era melhor que cinema, circo, futebol, ou carteado. Hoje, depois de tanto tempo, ainda tenho a impressão de que o Carrasco sentia mais prazer em ver gente sangrando do que em gozar. Saiu do seu rancho, cruzou os braços e ficou à espera da minha reação diante da ameaça do Sebite. Se eu me borrasse e não reagisse, então, o seu prazer seria ainda maior. Ele adorava assistir alguém ser degolado como um bode manso. A lâmina da peixeira do Sebite brilhava ao luar. O seu olhar fixo era igual ao de uma cobra cascavel pronta para desferir o bote. "Então, filho da puta safado, vais querer que eu te mate assim mesmo parado feito um boi?" Foi neste exato instante que a reima veio chegando. Pouca gente conhecia a reima. Ali do bando ninguém. A minha, quem deu foi a Coló, madrinha de batismo que me arranjaram. Diziam que tinha parte com o diabo e poder para proteger ou desgraçar qualquer vivente. Fosse Rei ou esmoleiro; rico ou miserável; bicho gente ou cachorro do mato. Eu sempre pedia à alma da minha madrinha que a reima nunca aparecesse enquanto eu estivesse no bando do Carrasco. Sabia do seu medo doentio. Ele podia mandar me matar antes que ela chegasse. Quando
estava perto de aparecer eu já sentia a diferença no meu
corpo. Primeiro corria uma frialdade da cabeça ao calcanhar.
Depois eu caía, estrebuchava no chão, escumava muito pelos
cantos da boca, me espojava feito um porco na lama e as unhas iam crescendo. Quando
comecei a me espojar, o Sebite pensou que estava inventando doença,
mas depois, veio a babação e achou que fosse mesmo a opilência.
Sabia que a doença pegava de longe, com qualquer respingo daquela
baba. Daí o Sebite foi parando de gingar, se aquietou e ficou
olhando pra mim desconfiado. Foi quando senti os braços e pernas
encompridarem, as unhas virando garras e o corpo todo coberto de pêlos
pardacentos. Minha cabeça também modificou a sua forma,
os olhos foram empurrados mais pra fora e passei a enxergar tudo também
para os lados. Tive uma vontade louca de gritar, mas da garganta só
saía um grunhido rouco. Tentei ficar de pé, mas só
conseguia, se ficasse de quatro. Olhei ao redor e vi um franzido na
testa do Sebite. Ele tava branco, com os olhos arregalados. Os outros
cabras também pareciam estar apavorados. |