UMA VINGANÇA DO CÃO
Luís Valise
 
 

Um vira-lata raspava as patas num saco plástico caído do latão de lixo do hospital, e eu, com irreprimível curiosidade, me aproximei para ver do que se tratava. O saco se rompeu, o bicho meteu o focinho lá dentro e trouxe um fígado inteiro, já escurecido. Bem que eu tentei afastar o animal com gritos de "Fora!", "Passa!", mas ele não me deu bola, e abocanhou o órgão necrosado. Desviei o olhar quando ele começou a engolir pedaços da carne sem mastigar. Mais tarde, à noitinha, levei a Deusirene para namorar na praça que fica atrás do hospital. O local não é muito iluminado, e algumas árvores fazem um escurinho legal para os jovens casais que estão descobrindo as coisas da paixão. Ela era loirinha, sua boca cheirava hortelã, e deixava pegar nos peitos. Foi durante um beijo que a coisa aconteceu. Deusirene enfiou a língua na minha boca e no mesmo instante, sem nenhum aviso, eu vomitei. Só deu tempo de virar o rosto, e pedaços de pimentão recheado, misturados com ovo duro entraram por sua blusa desabotoada, ficando grudados nos seus seios, na sua barriga, meu Deus, não quero lembrar. Eu estava me apaixonando pela garota, contei para ela a história do cachorro, tirei a camiseta para limpar seu corpo, ela estava muito assustada, e de repente vomitou também, sobre minhas mãos, minha camiseta, sobre meus tênis novos.

Depois de alguns dias de incertezas e algum suspense eu já estava de novo com as mãos nos peitos da Deusirene, e a sombra das árvores da pracinha encobriam nossas descobertas, mãos se atrapalhando nos botões libertadores da ansiedade que deixava marcas pelo chão. Criei coragem e toquei no assunto proibido:

- Você jura que não conta pra ninguém? Nunca, nunca?

- Juro.

Ela abriu um sorriso cheio de encanto e cheiro de hortelã:

- Você não vai mais usar aqueles tênis?

- Não. Ficaram com cheiro de azedo.

- Você me desculpa?

- Você me mostra o peitinho?

- Mostro.

- Então eu desculpo.

Anos depois nos casamos. Os filhos chegaram, casaram, se foram.

*****

O delegado não permitiu que eu me sentasse. Tive que ficar em pé um tempão, e com esta barriga não é fácil. Também tenho varizes, minhas pernas incham, um inferno. Mostrei para ele, não adiantou. O homem está mesmo bravo. Está olhando para mim.

- Aonde o senhor estava com a cabeça? Por quê o senhor fez isso?

- Não sei, doutor... Eu estava vendo televisão, a Deusa veio se sentar perto de mim, pegou minha mão, perguntou se eu ainda gostava dela, eu falei que sim, aí então ela me pediu um beijo.

- E o quê isso tem de mais?

- Nada, doutor. Foi só quando ela enfiou a língua na minha boca, doutor. Não sei o que me deu, me subiu uma raiva, um ódio, não pensei em nada na hora, só sei que mordi com toda força.

- O senhor sabe que arrancou metade da língua dela?

- Sei, sim senhor.

- E cadê o pedaço da língua?

- Engoli, doutor. Engoli.

*****

Pouco tempo de cadeia. Não veio ninguém me esperar. Ainda bem que me deram uns trocados para a condução.

Desço do ônibus, fico parado na esquina. A rua está deserta. Tenho vergonha de ser visto. Vou andando devagar, cabeça baixa. Quando chego em casa noto que não tenho a chave. Quem diria que para tocar a campainha seria preciso tanta coragem? Eu toco. E espero. Um barulho de chave virando, e Deusirene abre a porta. Entro de cabeça baixa. Não sei o que fazer. Ela me indica o sofá. Eu me sento. Ela some para dentro do quarto. Sai com um pacote. Senta do meu lado, põe o pacote no meu colo. Eu rasgo o embrulho com mãos vacilantes. Abro a caixa. Um par de tênis branco, novo em folha. Não sei o que dizer. Olho para Deusa. Ela abre um sorriso encantador, com cheiro de hortelã. E sem língua.