TRECHO
DE UMA EXISTÊNCIA
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Claudia
Sanzone
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Sei que faço parte de uma continuidade sem fim, mas decidi revelar apenas um trecho do que existo. Começo minha história quando era ainda uma esfera. Naquela ocasião estava limitado por uma superfície redonda. Depois de um tempo, ocupei o centro daquela bola, distanciando-me ligeiramente do contorno esférico que me continha. Mais um pouco e eu, que até então fora quase mais nada além de um ponto, entrava numa etapa mais complexa: a da multiplicação. Uma infinidade de pequenas estruturas, auto-suficientes cada uma, montavam-me. Espichavam-me em tamanho e quantidade até que eu concebesse que tudo aquilo obedecia a uma ordem sábia. Paciente e ansioso ao mesmo tempo, compreendi que amadurecia na condição de organismo. Daí em diante, era preciso esperar. Durante essa expectativa, podia tirar conclusões. A cada etapa dessa maturação, por eliminatória, era possível renovar esperanças. Notei que não seria peixe, nem réptil, nem ave. Seria um mamífero. Tive medo de me dar o direito de ter um sonho audacioso: o de que seria humano. Não passou de um delírio. Um alongamento da coluna vertebral além das expectativas e um par de orelhas mais longos que minha vontade determinaram que eu seria um quadrúpede. Contentei-me. Afinal, era um corpo! Um tubo flexível conectado ao meu abdômen trazia o que era necessário à permanência material da minha vida. A substância que eu recebia nem sempre me nutria plenamente. Pensei que talvez a fonte estivesse carente de força vital. Porém, apesar das dificuldades, eu prosseguia. Dentro do meu tórax, um órgão pulsátil avisava em ritmo de galope que a hora se aproximava. Não tardaria a despedida de todo aquele aparato que me acompanhara até ali. O dia esperado chegou. Como o vento forte que precede tempestades, fui tomado por solavancos assustadores que me impulsionavam adiante. Naquele momento nenhum esforço podia ser dispensado. Meus músculos tênues participaram intensamente da jornada. Lutei bastante, coordenei meus movimentos com a garra e a vontade dos que triunfam. Contudo, travei uma luta vã, além do que me era permitido suportar. Deixei o ambiente ora agradável, ora hostil que me abrigara, mas sucumbi em seguida. Silêncio. Passados uns instantes, eu indagava sobre o propósito de tudo acabar em nada. À medida que aguardava uma explicação, meu corpo lentamente se desfazia. Nesse período eu não habitava mais um compartimento redondo como antes, mas estava cercado por paredes macias que mantinham um movimento constante. Parte de mim, constituída por elementos nobres, atravessou os limites daquelas paredes imensas e incorporou-se ao organismo que me sustentara até há pouco dias. Experimentei a agradável sensação de ajudar a compor um alimento rico, líquido e branco que nutria meus irmãos sobreviventes. Outra parte de mim, que resistia à ação das enzimas digestivas de minha geradora, parecia virar resto. Resto? Resto, sobra, reminiscência, pouco importa. Alcancei um ambiente seco, com cheiro de verde, completamente diferente dos anteriores. Seres minúsculos e unitários trabalhavam com afinco recolhendo o que de mim ainda insistia em ser útil. Outra vez, lá ia eu fazendo parte de mais um organismo. Este último não guardava o calor de um útero, entretanto esbanjava suavidade e delicadeza. Desfrutei a leveza de muitos serenos e colhi a liberdade de várias brisas. Certo dia, um par de mãos pequenas me recolheu. Seus dedos me tocaram com uma firmeza estranha. Um canto melancólico e infantil me entorpecia devagarinho. Mal-me-quer, bem-me-quer. Mal-me-quer, bem-me... Mal-me-quer, bem... Mal-me-quer... Mal-me... Mal... |