BILHETE
William Stutz
 
 

Sentado no canto mais escuro do bar, coçava a barba por fazer. Daquele ponto podia observar todo o ambiente. O entre e sai das gentes. O apressado engolindo cafezinho, que pelo cheiro que emanava da cafeteira prateada
mergulhada em cuba d'água sempre aquecida devia ser requentado, feito há dias talvez.

Outro, a comer lambuzado pão com molho de almôndegas vindas de travessa onde ficavam a boiar em vermelho caldo na vitrina de salgados, como estranhos seres alienígenas que ainda não foram pescadas. Ali também havia ovos
cozidos de cascas azuis e vermelhas, pastéis ressecados, e claro, moscas, muitas moscas.

Do seu canto observava também uma parte da movimentada rua. A porta do bar, uma moldura. Enorme boca parecia tentar engolir carros e pessoas que ao seu alcance passavam. Um quadro em movimento, mutável, tristemente dinâmico, vazio. Cinza.

Fazia um calor insuportável. Abaixou os olhos para o seu copo de cerveja, estava quente. Com as costas da mão conferiu a temperatura da garrafa, sentiu a umidade do vidro suado, mas pressentiu que o que ainda lá restava também já não estava gelado, nem fresco.

Assim mesmo tornou a encher o copo, espuma branca e abundante tomou quase o copo inteiro, uma pequena cachoeira escorregou alva pela borda e derramou pela mesa de lata, virou amarelo líquido rapidamente. Com a ponta do dedo ensaiou um desenho sem sentido com a cerveja derramada. Um círculo, algumas letras, um rio e suas curvas.

Bateu a mão no bolso da camisa procurando o maço de cigarros. Mania, parara de fumar havia muito tempo. Tamborilou no encosto da cadeira do lado uma música que nem conhecia. Ansiedade .

Buscou com os olhos alguém conhecido.

- Mais uma cerveja, por favor, tem torresmo? - Ia ficar ali um bom tempo.

Procurou no bolso o guardanapo de papel rabiscado. Era o bilhete que havia recebido no dia anterior. Entregue por um menino vendedor de flores, aquelas rosas mumificadas embrulhadas em papel celofane.

- Moço, mandaram entregar. Baixou os olhos para a encomenda um segundo e quando outra vez os ergueu o pequeno mensageiro havia sumido, mágica, não tinha para onde ir tão rápido, estranho.

Além da caligrafia bonita, do perfume que já não mais se podia sentir, o que mais encantava era o beijo de batom. Vermelho vivo. Um convite ao desejo. Prometia encontro naquela mesa, na proteção da tarde quando poucos ao bar se aventuravam. Não conhecia a dona daquela caprichosa mão e de tão perfeita boca. Sonhava.

As horas avançavam, o entre sai aumentava, a moldura da porta adquiria tons escuros, faróis agora acesos cruzavam seu campo de visão. Ninguém. Com paciência sofrida, colou o bilhete no casco da última cerveja, o vermelho do batom escorreu papel abaixo em contato com água condensada. Observou a cena sem emoção especial. Quem sabe amanhã? A solidão ainda permite sonhos.