ALLEGRO MISANTROPO XX
Sérgio Galli
Inverno de 2006

(Ao som do Concerto no 1 para piano e orquestra, de Johannes Brahms)

"UMA NOVA CIVILIZAÇÃO
Estamos num momento de mudança. Nossa civilização está terminando. O conceito de trabalho mudou e nossa sociedade foi construída sobre um determinado conceito de trabalho de 30 anos atrás, o do emprego. Só que o emprego desaparece. O emprego não existe, mas o conceito dele é o mesmo. E, no entanto, a gente não prepara os jovens para profissões liberais, aquelas em que você não trabalha para uma empresa, mas exerce uma profissão, como os médicos, os juízes. As pessoas não são muito mais úteis para as empresas e, assim, são consideradas socialmente inúteis. Uma pessoa só é considerada útil quando ela dá lucro. Senão, ela não é mais rentável. Por isso escrevi em Horror Econômico que "os ricos não precisam mais dos pobres". O desemprego virou uma pessoa supérflua. Vivíamos numa civilização que explorava os homens, agora ela os elimina. Fazemos chantagem com o desempregado, o obrigamos a aceitar o que lhe for oferecido. Ele fica sem alternativa. Isso é ditadura. Dizemos que quando alguém perde seu emprego perde sua dignidade. Ao dizer isso, culpabilizamos os desempregados. Tornamos a vítima culpada. Estamos regredindo ao século 19, com todos aqueles trabalhadores pobres, sem condições. Eu tenho vergonha de viver em Paris, uma cidade tão luxuosa e com pessoas dormindo na rua. Muitas vezes são trabalhadores que não tem dinheiro para pagar um aluguel. Os jovens protestam contra o CPE lutam contra a perspectiva de voltar ao século 19."
- Viviane Forrester -

DE QUE SERVE A BONDADE
1
De que serve a bondade
Se os bons são imediatamente liquidados, ou são liquidados
Aqueles para os quais eles são bons?
De que serve a liberdade
Se os livres têm que viver entre os não-livres?
De que serve a razão
Se somente a desrazão consegue o alimento de que todos necessitam?
2
Em vez de serem apenas bons, esforcem-se
Para criar um estado de coisas que torne possível a bondade
Ou melhor: que a torne supérflua!
Em vez de serem apenas livres, esforcem-se
Para criar um estado de coisas que liberte a todos
E também o amor à liberdade
Torne supérfluo!
Em vez de serem apenas razoáveis, esforcem-se
Para criar um estado de coisas que torne a desrazão de um indivíduo
Um mau negócio.
- Bertold Brecht -
(Que morreu há 50 anos, no dia 14 de agosto de 1956, mas sua poesia está muito viva)

"O mundo é dos "ispertos". O mundo é dos que gostam "de levar vantagem em tudo". O mundo é de quem "fura" o farol vermelho, pára o automóvel sobre a faixa de pedestre, estaciona o carro na calçada... O mundo é dos que têm caixa dois. O mundo é de quem sempre "dá um jeitinho". O mundo é de quem dá e recebe propina. O mundo é de quem planta soja e destrói a floresta amazônica. O mundo é de quem trapaceia, engana, dissimula, finge, urde, enfim, vale-tudo para se conquistar, vencer, subir na vida. O mundo é para quem os fins justificam os meios. O mundo é de quem dá pontapé. O mundo é da propaganda. O mundo é de quem aposta em nivelar por baixo.

O mundo... Parênteses para uma notícia que é o símbolo de tudo isso. No Estado de S.Paulo de um dia de julho, cidadã, moradora de uma pequena cidade do interior tinha o cartão do bolsa-família. Arrumou um emprego e devolveu o cartão. A vizinhança passou a hostilizar a cidadã. O mundo é da inversão de valores. O mundo é de quem pensa "ao". O mundo é das sanguessugas. O mundo é dos "mensaleiros". O mundo é da mídia. O mundo é do lucro. O mundo é da empresa/marca de roupas e sapatos esportivos que vende por uma pequena fortuna um produto fabricado em algum país do quarto mundo, por mulheres e crianças que trabalham 12 horas por um salário vil.

O mundo é de quem coloca na vitrine, na etiqueta de alguma quinquilharia o preço R$29,99! O mundo é dos espertalhões. O mundo vale por um bifinho. O mundo é money. O mundo é cinismo. O mundo é egoísmo. O mundo é narcisismo. O mundo é ganância. O mundo é comodity.

O mundo é de quem "você sabem com quem está falando?" O mundo é de quem não tem preço. O mundo é de quem tem folha corrida. O mundo é de quem não tem escrúpulos. O mundo é de quem é celebridade. O mundo é do capital. O mundo é das corporações. Mundo imundo."

Este é um bilhete para o fim do mundo.

Sugestão de leitura: "O mundo assombrado pelos demônios", de Carl Sagan, Companhia de Bolso e "Horror econômico", de Viviane Forrester, editora Unesp.

 
 
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