O QUE IMPEDE O BRASIL DE TER JUSTIÇA?
Raymundo Silveira
 
 

Paradoxalmente, tive de estudar e pensar muito para chegar à simplicidade dessa resposta. O que impede o Brasil de ter justiça é um fato consumado: três séculos e meio de escravidão. Costumamos esquecer que, do ponto de vista antropológico, não somos ainda um Povo. Constituímos o embrião de uma raça que mal completou cinco séculos. Com um agravante: dos três grupamentos humanos donde se originou a nossa estrutura étnica, apenas os indivíduos brancos do sexo masculino constituíam a elite. Dizia-se até que o componente aborígene sequer possuía uma alma. Quanto aos negros - já se sabe - eram tratados como alimárias. Mas nada impediu o cruzamento entre esses elementos, dando origem àquilo que hoje é o Povo Brasileiro.

Foram, portanto, cerca de 350 anos! (Mais de um terço de milênio). Geralmente a mera citação de números não impressiona, então façamos alguns exercícios de comparação. O regime escravocrata no Brasil durou três vezes mais do que a Guerra dos Cem Anos. A metade do período da dominação moura na Península Ibérica. Mais de um terço do Império Bizantino. Uma vez e meia o tempo do Império Romano do Ocidente, desde Jesus Cristo. Em outras palavras, tratamos seres humanos pior do que bichos três vezes mais tempo do que deixamos de tratar. Desde o descobrimento até agora, apenas durante 118 anos o país existiu sem escravidão. As elites dominantes de hoje não passam de descendentes dos donos de escravos e tão cedo deixarão de se comportar como tal. Adicionando-se a deseducação das classes subalternas, como pensar em justiça?

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Texto selecionado pela Revista Cult e publicado no número 105 (Agosto/2006)