MATADOR
DE CORAÇÕES
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Luís
Valise
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Meu Querido (Coronel Matosinho estranhou a forma com que Belinha começava o bilhete. Trinta e três anos de casados, mais três de noivado e namoro, e jamais Belinha se permitira extravasar qualquer tipo de sentimento que não a tristeza, ou a angústia, ou um infindável desânimo. Vê-la era um convite ao bocejo. Matosinho lembrava que já na lua-de-mel estranhou a passividade com que Belinha aceitava sua montaria desajeitada, o amor desaprendido com as putas que vinham pagar seus pecados em Porto Esperança. Essa fora sua escola, e agora ele comandava com trancos e barrancos o corpo que se deixava cavalgar como um tronco abraçado pelo náufrago. Quando Matosinho caía para o lado, resfolegante, Belinha não fazia mais que fechar os olhos e buscar um sono que logo seria cutucado pelo homem reacendido. Ela se deixava virar ou dobrar ou apertar, um capacho de carne.) se agora lês este bilhete é porque morri , ou de outro jeito não estarias vestindo esse terno preto que mofava no fundo do armário. Espero que não estejas em público, pois o que tenho para dizer decerto causará surpresa. (Estava na capela em que o corpo de Belinha era velado. O terno trazia um cheiro forte de naftalina. Buscara em seus bolsos um lenço para espantar uma grande varejeira que, depois de traçar elipses graciosas sobre o corpo, pousara próximo aos lábios descorados da mulher. Seus dedos encontraram o papel dobrado dentro do bolso interno do paletó. A letra tinha o mesmo arredondado inconfundível, e Matosinho não sabia se continuava a ler ou deixava para depois. Mas aquele início inédito aguçou-lhe a curiosidade, e ele resolveu seguir com a leitura, a respiração suspendida involuntariamente.) Sei que deves estranhar o tratamento de querido que jamais empreguei em vida, mas, creia, está carregado de ironia. Na verdade, uso o querido como usaria idiota, ou asqueroso. Por falar em asqueroso, era assim que te sentia na cama. A leucemia surgiu em minha vida como forma de libertação. Já estou livre de ti e de tuas mãos sebosas. (À medida em que lia o bilhete, o rosto do Coronel Matosinho embranquecia, e logo sua palidez se assemelhava ao da desencarnada. O silêncio ocupou o espaço dos murmúrios. Os lábios do Coronel transmitiam a leitura num Morse involuntário, e se a platéia não sabia a exatidão das palavras, compreendia seu significado. Tratada a pão e água, Belinha deixara para o final o chute certeiro no saco do opressor.) Aproveita bem o que te resta de vida, que já não é muito. Eu, de minha parte, gozei minha existência como louca, uma puta louca. Não contigo, claro, mas com o amor da minha vida. Ou imaginavas que eu tivesse passado a vida inteira como passei contigo? Claro que não. Nas tuas ausências, ou nas minhas ausências, aproveitei cada minuto, cada segundo, amando como nunca saberás que fui capaz. Sei que nunca abandonaste o convívio das putas de profissão, mas elas nunca te deram nada, bem sabes. Só quem pode dar é a mulher que ama ao seu amado. Por acaso alguém já te deu assim? Meu amado estará no meu enterro. Deve agora estar perto de ti. Seu coração se deitará ao meu lado, no caixão, e descerá comigo, e comigo viverá para sempre. (Agora o Coronel tinha a boca entreaberta, e praticamente lia em voz alta. Parentes e amigos acompanhavam a agonia que formava gotas em sua testa. Por alguns segundos fechou os olhos, tentando imaginar quem, dentre os presentes, tivera Belinha na cama. Lamentou não estar com a arma na cinta.) Sei que não estás com teu revólver na cintura. Mesmo um ignorante como você sabe que tudo tem limites. Por isso acho que vou dizer-te o nome dele, do meu amor. Assim você poderá olhar em seus olhos quando sentires saudades de mim. Lá estarei para sempre, nua e alegre como você nunca me viu. Seu nome é... mudei de idéia. Nunca saberás. Isabel"
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