YONE DE ARRUDA SAMPAIO
Beto Muniz
 
 

Por alguma razão, dessas que acompanham qualquer usuário de sistema público de transporte, eu também estava com a cara dentro de um livro. Não estava lendo de verdade, apenas vendo palavras sem as guardar na mente. O livro funciona como uma porta, preservando o espaço e a intimidade de cada passageiro. Mas quando convêm, os livros são baixados para o colo e os olhos espreitam com superior interesse a movimentação, seja uma calça justa; um decote ousado; o par de olhos verdes; os cabelos longos; um batom mais ousado ou apenas por fadiga no decorrer da viagem. No caso o meu interesse e, acredito, das demais caras absortas pelas páginas de livros, revistas, jornais, etc, etc... foi acionado pela quase súplica:

- Motorista, essa que passou era minha rua!

Todos os olhos e atenções se voltaram em direção à voz trêmula (as vozes tremem de acordo com a idade ou aflição de quem fala) e se depararam com a figura de uma senhorinha frágil, cabelos azuis desbotados. Eu não sei bem por que, mas sempre acho que essas senhoras de cabelos brancos tingidos têm nome, cara e jeito de Yeda, com ipisilone. Por coincidência a encontrei outras vezes e acabamos por conversar estabelecendo amizade. "Tempo seco!", "Essa falta de chuvas me ataca a sinusite, sofro tanto" (adora uma conversa e só precisa de um Bom Dia para contar sobre sua vida, dos filhos, netos e até do falecido - faz o sinal da cruz), pois então, errei por pouco, era Yone. Admirou-se quando soube que eu faço livros, acha que sua vida dá um romance e eu sugeri que ela escreva e então me procure. No papelzinho onde me anotou seu telefone escreveu Yone mais uns cinco sobrenomes terminando com Arruda Sampaio. Muitos anos de vida e alguns de viuvez, mora com um dos filhos no alto de Pinheiros e na ocasião em destaque aqui, voltava do Itaim Bibi, onde fora visitar a filha mais moça que acabara de lhe dar um neto. O terceiro. Mas chega de atropelar a história, tudo isso eu soube depois e o que vale é que nessa primeira vez eu tirei os olhos do livro e dei de cara com uma senhora bem vestida, bolsa minúscula presa entre o peito e a mão trêmula (as mãos tremem de acordo com a ansiedade ou idade), acabara de pensar em voz alta, quase suplicando, e se levantava com dificuldade do primeiro assento. Aproveitou que o ônibus estava parado no semáforo para solicitar educadamente:

- O senhor pode, por favor, abrir a porta pra que eu desça?

- Está fora do ponto dona!

- O senhor vai mesmo me fazer andar todo esse percurso de volta?

Usava a lógica e sua fragilidade aparente para comover o condutor. Mantinha um ar altivo, apesar do tom suplicante. Bem se via que era uma mulher de classe diferente daquela que utiliza coletivos com freqüência. As roupas, postura e vocabulário denunciavam que ela era uma estranha no ninho. Aparentava bem mais que os sessenta anos necessários para embarcar e descer pela porta da frente. O motorista sucumbiu e acionou a abertura da porta.

Dona Yone dá um passo em direção ao degrau, se volta e faz o que mais gosta, fala demais:

- A gente se acostuma com motorista particular e esquece de prestar atenção ao caminho.

Lenta e sofrida descida, degrau por degrau, o sinal abre. O motorista, pelo retrovisor interno, olha para a cara de riso do cobrador. Na traseira ouve-se uma buzina de algum apressadinho que quer passagem. Dona Yone chega finalmente ao último degrau e se vira para desejar boa viagem. Sua ingenuidade não permite que perceba a estupefação causada. Vira-se, pisa finalmente na calçada e vai com seus passinhos miúdos para sua rua. Algumas caras voltam para dentro das páginas, o cobrador finalmente solta a gargalhada presa... Não entendo o xingo de um rapaz lá na frente. Está indignado com a senhorinha. Estou interessado na vida lá fora, olhos apreciando a paisagem urbana que chacoalha através do vidro. Livro fechado sobre a perna.