BILHETE
AZUL
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Adão
Jorge dos Santos
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Assim que o telefone tocou senti um arrepio percorrer todo o meu corpo. Era a primeira vez que isto me acontecia. Olhei para o telefone, que insistia em tocar, pressentindo de que quem estava do outro lado tinha urgência em falar. Como eu estava perto atendi. Assim que desliguei olhei em torno e vi pavor e ansiedade nos rostos de meus colegas. E antes que me perguntassem o nome da próxima vítima, eu disse: foi o Geraldo. Geraldo levantou-se calmamente. Abriu a gaveta e começou a separar suas coisas, colocando-as sobre a mesa num gesto de despedida. Em seguida passou a mão por sobre toda a mesa, cantos e contornos, até na cadeira deu uma passada, como se dissesse adeus a quem por tantos anos lhe fora companheiro. Passou por nós de cabeça erguida, sabíamos que não mostraria fraqueza para ninguém, era um homem valente, que certamente na solidão do desemprego, longe de todos choraria. Fui ate ele e lhe dei um forte abraço. Depois que Geraldo saiu, não se falou mais nada. Era só uma questão de tempo. Edgar quebrou o silencio da sala falando talvez com ele mesmo ou para que nós o escutássemos, disse que não era justo, quase chorando, com a voz embargada, que era um bom funcionário, responsável e que nunca tinha faltado, e que não iria ser demitido assim no mais, não mesmo! E o que faria agora da vida se fosse demitido, havia passado mais tempo na empresa de que na sua própria casa, não saberia o que fazer, disse que estava perdido! Clarice e Marcela, secretarias começaram a chorar abraçadas, esperavam o pior. O fato era de que uma grande parte do quadro funcional já havia sido dispensado, e era só o começo. Parecia o fim do mundo. E de certo modo estava sendo para alguns. O engraçado desta situação, se é que há graça nisto, era de que me considerava imune a este tipo de assunto. Também era um empregado exemplar, não tinham o que reclamar de meu serviço, portanto não havia com o que me preocupar. Já havia acontecido esta mesma situação tempos atrás, muitos foram demitidos, eu permaneci. Só que agora não tinha a mesma certeza. O telefone tocou novamente e Edgar atendeu. Desligou e baixou a cabeça. Não foi preciso dizer nada. O inevitável acontecera. Ele era a bola da vez. Edgar parou na minha frente e sem dizer nada me abraçou. Pela primeira vez eu vi um homem chorar. Disse apenas Deus te acompanhe! Depois quando Clarice e Marcela saíram eu as abracei e desejei boa sorte. Em César dei um último aperto de mão. Em Roberto, o cabeça, que era um jovem, disse que isto fazia parte da vida e como era ainda novo, encontraria o seu caminho. O seco, que era um sujeito dedicado, que havia casado há pouco tempo e que tinha um lindo bebê, chegou e me abraçou fortemente. Vi nos seus olhos medo e perplexidade, próprias de um jovem pai de família. Em toda esta situação senti a presença de Deus. Deus estava em todos o corações e orações, era a ele que todos chamavam neste momento crucial. Deus estava no crucifixo de Eduardo, na guia colorida de Raquel, pendurado na parede na figura de Cristo, no meu pensamento, em todos os pensamentos. Deus certamente sabia o que fazia. Naquele lugar muitas orações e promessas foram feitas e não atendidas. Não demorou muito o telefone tocou novamente. Sem nenhuma pressa atendi, já sabendo instintivamente, o nome do próximo demitido. Desliguei e procurei um rosto amigo, um sorriso de compreensão, uma mão amiga, só então me dei conta de que não havia mais ninguém para ser demitido. Cheguei em casa não sei de que modo. Meu filho quando me viu perguntou porque eu estava chorando. Só então percebi que estava segurando fortemente o famoso bilhete azul. |