MALDITO MANTO VERDE-AMARELO
Renato Bruno Neto
 
 

O caro leitor, brasileiro, que se considera, claro, exímio conhecedor da história do futebol, guardando todas as escalações das seleções brasileiras na ponta da língua, tendo todos os álbuns de todas as copas totalmente preenchidos e guardados no maleiro do guarda-roupa, responda aí depressa: quem é que cuidava do uniforme de Bellini, Castilho, De Sordi, Dida, Didi, Dino, Djalma Santos, Garrincha, Gilmar, Joel, Mauro, Mazzola, Moacir, Nilton Santos, Oreco, Orlando, Pelé, Pepe, Vavá, Zagalo, Zito e Zózimo, na Copa de 58? Hein? Claro, seu Francisco de Assis. Não que eu seja também conhecedor de história pelotística. Mas é que Francisco de Assis era meu tio. Sim, era. Tio Chico morreu há um mês: exatamente no dia em que o Brasil perdeu para a França, na Alemanha.

Seu Chico era um apaixonado pelo que fazia. E olha que para cuidar da roupa suja de um monte de marmanjo suado e ainda por cima gostar disso, só sendo muito apaixonado mesmo. O futebol era a vida do seu Chico. Quando jovem, fora um becão de fazenda daqueles onde o que falta em talento, sobra em disposição. Duas ou três alheias pernas quebradas depois, um contato aqui, outro ali, Francisco de Assis entrou para trabalhar na Confederação Brasileira de Desportos — onde ficou até 1974 — e descobriu como poderia contribuir para que o futebol brasileiro se tornasse o melhor do mundo. E para ele, durante todos esses anos, mesmo nos maus momentos em que o mundo todo colocou em dúvida a supremacia do nosso futebol-arte, a coisa era inquestionável: “ninguém coloca o coração na ponta da chuteira como o brasileiro”.

Pois bem, meu amigo, imagino que já deva ter dado para ter-se uma noção de quem era Francisco de Assis e do quanto ele amava o futebol brasileiro. Mas aí vai um fato que pode ilustrar ainda mais toda essa paixão: desde a Suécia, em todos os dias de vida até o último, o velho só usou os agasalhos que ganhara da CBD. Calça, blusa, camisa e meiões. Para ficar em casa, para ir à missa, em festas, batizados, natais, carnavais, fazendo frio, calor, chuva e, acredite, até para dormir, tio Chico só se vestiu com o “adidas” brasileiro, que na verdade era de outra marca. Quarenta e oito anos com a mesma roupa, alternando as duas ou três trocas que havia herdado da época da ativa. E tinha mais: havia um pedido formal, por escrito, aberto a todos os familiares, inclusive a mim, para que quando a morte o alcançasse, fosse enterrado, claro, com o traje completo.

E estávamos todos na sala vendo o Brasil-contra-França (ou seria Brasil-contra-Brasil?), quando Roberto Carlos resolve arrumar as meias, ou recuperar o fôlego, seja lá o que tenha acontecido. Bem, o resto da história o leitor já sabe, não precisamos entrar em todos os detalhes. Mas o que aconteceu depois do gol francês é que meu tio passou mal e precisou ser levado para um hospital. Enfarto. Na ambulância, ao meu lado, tio Chico ainda conversou o seguinte:

- Tô indo embora.

- Mas quê, tio! Não é nada...

- É verdade, tô morrendo. Mas antes quero que você me faça uma coisa.

- Ô, tio...

- Anda rapaz, faz ou não faz?

- Faço, tio.

E com lágrimas nos olhos balbuciou:

- Esquece o negócio do enterro. Tira essa merda de uniforme de cima de mim. Tô morrendo de vergo...

Quando chegamos ao hospital, não havia mais nada a ser feito: o Brasil já tinha perdido a copa. Em contrapartida, havia ganho mais um nome a quem pedir proteção nas próximas disputas: são Francisco de Assis. Não aquele, mas outro: o padroeiro dos roupeiros.