O AVESSO, DO AVESSO, DO AVESSO
Raymundo Silveira
 
 

Nunca fui desleixado. Sempre usei a roupa certa no trabalho ou em reuniões sociais. Mais por uma questão racional do que por minha vontade de macho. Por mim apenas me abrigaria do frio, mas aprendi que um descuido na maneira de vestir pode ser a diferença entre o fracasso e o sucesso. Naquela noite de sábado não tive como escapar de umas Bodas de Prata. Escolhi uma calça escura, uma camisa social listrada em tons bege. Pus cinto, meias e sapatos pretos, joguei uma malha, também preta, nos ombros, com as mangas caídas na frente, formando duas linhas verticais. E saí.

No metrô escolhi um assento livre. Duas estações adiante ela entrou. Era linda. Tinha a pele trigueira. A boca era carmim carnudo. O contorno do rosto lembrava o da Pietá. O nariz perfeito, as maçãs salientes e duas covinhas deliciosas. Da testa, arredondada e ampla, emergiam as raízes de uma basta cabeleira negra. Olhos da mesma cor. Uma saia curta deixava expostos joelhos um tanto angulosos e o terço inferior das coxas. Veio mansa, pediu licença e sentou.

A luminosidade no interior do veículo era escassa. Não resisti àquelas pernas. Toquei-as levemente, simulando acaso. Em vez de se assustar, ela me olhou com um sorriso, misto de candura e de malícia. Foi o bastante para disparar a trava tênue da minha sensualidade à flor da pele. Imediatamente uma excitação incontrolável me dominou. Aquela mulher tinha que ser minha de qualquer maneira.

Nem lembro bem a desculpa que arranjei para começar o assédio. Só sei que ela superou minhas expectativas e se revelou livre desinibida, pronta para o amor. Quando vimos, estávamos mergulhados um no outro, olhos nos olhos, promessas e risadinhas histéricas de vontade incontida. Acabamos por descer no centro, desistindo cada um do seu objetivo. Mandando o mundo às favas e assumindo o desejo, felizes por encontrar parceria à altura. A experiência dizia que apesar das minhas limitações, eu tinha como fazê-la a mais feliz das amantes. Tinha certeza que ia ser uma noite maravilhosa de amor. Mal nos encontramos a sós, ela aproximou da minha a sua face e ofereceu aos meus aqueles grandes e macios lábios. A princípio, apenas se tocaram. Senti um hálito ardente de mulher à procura do meu. Jamais vou esquecer o calor daquele beijo. Um frêmito percorreu meu corpo. E os dois se colaram bruscamente, como se ímãs de carne tivessem sido dispostos face a face. Minha língua parecia feita de um tecido erétil e penetrou aquela boca com tamanha força que a fez estremecer. Era uma espécie de coito oral. Mas a violência sugeria antes um estupro do que um ato de amor. Um estupro desejado. Consentido. Implorado.

Somente quando ficamos nus, percebemos as nossas invertidas particularidades anatômicas. Ela, na verdade, era Ele. E eu, maldita natureza que me dera um corpo castrado e inúteis seios... Desde pequenino minha masculinidade interior gritava... Então, descobrimos que muito mais importante do que o sexo ou a opção sexual é esta mágica que une duas pessoas e que independe disso tudo. E nos amamos, várias vezes, durante a noite inteira, a despeito de todas as diferenças. E foi uma experiência única. Inesquecível. Deliciosa. Afinal pudemos ultrapassar as nossas fantasias e aproveitar os nossos corpos errados da maneira convencional. Numa equação onde menos com menos deu muito mais.