O PÓ DA RUA
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Francine Ramos
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Do inicio de tudo. Não eram simples sapatos empoeirados no guarda-roupa velho, da casa velha, que a emprega (velha) há tempos não limpava. Era o sapato que me trazia de volta a dualidade. Os dois lados sempre presentes. O famoso anjinho e diabinho, um em cada lado da cabeça dizendo o que fazer. Plenitude? Ah! Isso é para pessoas fingidoras. Aquelas típicas que fingem ser boazinhas, fingem prazer. Do inicio de tudo. Foi no dia que mandei Severina embora de casa. Eu não agüentava mais aquela empregada patética dizendo o que eu deveria fazer. Várias vezes eu cheguei cansada querendo apenas minha cama, ainda com a roupa de trabalho, sem banho, sem tirar a maquiagem. E lá vinha Severina me dizer para tomar um banho, para tirar o pó da rua. No início eu achava graça nessa história do pó da rua. Pra Severina tudo se resumia em tirar o pó da rua. Mas com o tempo, sua cara patética, seu cabelo fora do lugar e aquela bermuda de lycra com a camiseta da campanha política começaram a me irritar. Todo dia era o tal de tirar o pó da rua. Que irritação, Severina! Eu dia a ela. Forte, brava, segura. A coitada chorou toda a noite. Escutei do meu quarto os seus soluços contidos. E não fiz nada. Depois desse dia ela emudeceu. Não falava mais do pó da rua. E aquele seu silêncio fez de mim pior do que já fui. Nunca fiz questão de ser boazinha. Nunca fiz questão de dar minhas roupas velhas - mas em ótimo estado - para Severina, eu não queria descobrir a sua dignidade. Eu não queria sentir que eu tinha pena dela. Todo fim de semana Severina pegava o trem e ia visitar sua mãe no interior. Chegava segunda-feira uma hora mais tarde, foi o combinado. Eu não queria sentir pena, eu não queria sentir compaixão por aquela mulher tão simples, tão digna, tão fazedora perfeita de seu trabalho. Eu não queria ter a certeza de que eu - com minha conta no banco, meu carro, meu apartamento lindo e bem decorado colaboravam para a miséria de Severina. O chinelo gasto, as roupas tão sem cor, o ônibus que ela pegava todos os dias - lotado, fedido, sujo. Porque o mundo externo de Severina era o que eu via dentro de mim, mas eu não queria deixar claro a mim que a podridão dos meu pensamento era por causa de sua passividade. Severina, Severina. Hoje acordei e não consegui trabalhar - fiquei olhando o sapato empoeirado no guarda roupa. Faz uma semana que Severina não está mais aqui. Uma semana que o pó da rua continua crescendo nos móveis. Eu não me importo, só fico triste em ver minha coleção de taças de vinho empoeiradas na cristaleira. De resto, não sinto nada. O problema é que Severina me desmistificou. Fez de mim parte do pó da rua. Severina fez de mim uma metáfora. O pó da rua que voltava todos os dias para atrapalhar o seu trabalho. Descobri que Severina não gostava de mim, gostava da casa, com o continuo pó da rua que ela limpava e limpava, mas eu - o maior pó da rua - não percebi. E quem sabe o contrário disso também seja uma verdade, que Severina gostava de mim e queria realmente me livrar do pó que sou. |