XÊNIA
Beto Muniz
 
 

Bicho grilo, saia rodada, blusa colorida, embornal de tricô, sandálias tiras de couro cru... Nada! Ela é apenas herança de tudo isso. Parece que os pais piraram no cogumelo e queriam impor um nome de batismo pra lá de esotérico na filha, Shangri-lá, mas o escrivão de plantão não tinha fumado e estrilou. No improviso escolheram Xênia. Na empresa é a gerente de setor Aguiar, do sobrenome, toda certinha, careta, cara de má e olhos atentos. Um terror para os subalternos e uma máquina de eficiência para os patrões. Coitada. Nem o Motta agüentou a caretice e terminou o namoro depois de alguns meses. Nunca mais ela namorou colega de trabalho, que se saiba nem colega da empresa nem de fora dela, e por isso suspeitas de ser homo. Especulações fomentadas pela rádio peão! Se perguntado o Motta não diz nem que sim nem que não, faz mistério maior rindo com o canto da boca. Rádio peão noticia: ele ainda gosta dela. Dia desses ela apareceu com um lenço amarrado ao pescoço, bastou um momento de descuido e deu para eu ver a marca de chupão embaixo do tecido. Fiz boca de siri! Dia seguinte gola alta. Nem tanto frio assim, mas tudo bem, belo disfarce. Já devia estar roxa, a marca! Acabou a semana e o pescoço ainda escondido. Foi só isso. Porém, não precisou mais e minha imaginação criou asas na marca arroxeando, ficando parda e finalmente desaparecendo. Comecei a prestar atenção nos trejeitos, no andar, falar... me peguei observando ela beber água. Chegou, puxou o copo descartável, vieram dois, devolveu um e posicionou o outro no bebedouro. Corpo ligeiramente curvado para frente, o tecido arredondou na popa, primeira vez que vi a marca da calcinha por debaixo do terninho. Deixou meiar com água gelada e depois completou com natural. Levou o copo aos lábios, unhas bem cuidadas, sem anéis, entornou a água lentamente, pequenos goles sorvidos com os olhos fixos na borda do copo, respirando o oxigênio lavado. Lábios finos, sem marca de batom no copo. Nem percebeu que eu estava ali ao lado, embevecido. Sim, estava me apaixonando.

No chope de sexta fiquei calado. Todos falando sobre todas do departamento - as mulheres também falam dos homens, no entanto ninguém falava nela, nem o Motta. Isso me criou uma mágoa discreta. Xênia não era o alvo de nenhum homem na empresa. Nem da maledicência das mulheres. Rádio peão não funciona no happy-hour. Ninguém enxergava nela uma balzaquiana deslumbrante e pronta para ser chupada no pescoço como eu a via. Como podiam ser tão cegos? Melhor pra mim! Não tenho concorrência. Passei a acompanhar seus horários, hora de chegar, de finalizar o expediente, e principalmente os horários de almoço. Sempre sozinha em direção ao centro comercial. Magra, altura mediana, cabelos pretos corridos, curto. Rosto fino, dentes da frente levemente encavacados uns nos outros. Antes de enfear o riso, raros, davam certo charme. Lábios finos, já falei... Sempre de terninho, peitos pequenos, sem barriga, mais calça sobrando do que bunda enchendo... Não é bonita! Mas tinha a lembrança do chupão no pescoço! A imagem acende lâmpadas na mente, quando apaga eu tento encontrar na figura dela outro gatilho que dispare minha paixão. Nada, só mesmo a lembrança do pescoço chupado. Final de tarde, de expediente, de semana também, não tomo café, não gosto, mesmo assim fico por perto esperando a chefe de setor cumprir sua rotina. Aguiar chega, sorri a simpatia obrigatória e eu aproveito a deixa: Café? Sim. Puro ou com leite? Eu sei que é puro, sem açúcar e quase transbordando o copinho descartável, mas faço o cenário parecer real. Depois sirvo, faço sala... Bebo café! Amenizo, coloco leite e bastante açúcar. Puxo conversa, convido para o happy, ela pergunta onde, falo local hora e estendo o assunto lembrando que eu nunca a vejo com os demais fora da empresa. Ela nada fala. Apenas engole café amargo. Quebra minha expectativa com um meio sorriso de quem entendeu o que eu estava tentando fazer: Talvez eu apareça por lá hoje. Aquele tranco de ereção que só acontece quando se sabe que a mulher percebeu suas intenções e gostou. Sou gentil: Se quiser eu te espero para irmos juntos! Ela mede as inconseqüências em meus olhos, bem lá dentro, a aferição dura poucos segundos: Não precisa, obrigada!

Estou a pouco mais de meia hora sentado, no terceiro chope, quando ela chega, deslocada, parece que ninguém vai ceder espaço para mais uma cadeira, não estão acostumados com a presença de Aguiar, gerente de setor. Finalmente encontra espaço para enfiar mais uma cadeira e se acomoda do outro lado da mesa, junto às demais mulheres. Nos dez minutos seguintes a conversa parece fogueira apagada. Restam cinzas, uma brasa aqui, outra ali e finalmente o fogo volta. Ela beberica um drinque sem marcar o copo com batom. Permanece muda, olhos correndo aqui e lá, avaliando os assuntos, talvez querendo uma brecha para entrar na conversa. Aproveito o xixi de alguém e mudo de lugar! Sento perto dela, puxo assunto com a secretária do Ozório, que masca um chiclete eterno, e insiro minha convidada quando peço sua opinião sobre... sobre o que mesmo? Aguiar diz o que pensa e as duas travam discussão, estão com opiniões opostas e acirram defesas dos pontos de vista. Bom, agora eu estou sobrando. Mas eu sou do departamento comercial, tenho experiência em desenvolver, dispersar, restaurar e conduzir conversações. Pego as duas no laço, Xênia até que é boa de papo! Estou feliz. Animado com o rumo das coisas. Mais um drinque, a secretária do Ozório ri alto e faz evoluções com o chiclete na língua, tenta parecer sensual. Alguns dos colegas já se despedem, cadeiras são arrastadas e eu estou absorto pelas possibilidades dançando em minha mente. Sexta-feira quer terminar, apenas cinco pessoas na mesa onde cabem vinte. De repente eu quero ficar a sós com ela. Xênia Palmério de Aguiar é o nome dela. Xên na minha mente, deliciosamente Xên, que se despe para mim mostrando curvas de seios e bundas mais arredondadas do que são na verdade. Apenas com um lenço amarrado ao pescoço me chama, desata o nó e oferece a pele pulsante da garganta, pede que eu a marque como se fosse uma rês. Xênia está pedindo é a conta. Deposita os lábios na borda do copo e bebe o último gole do drinque, a cereja escorrega e eu escorrego junto pela sua língua, entro em sua boca, desço pela garganta e estou dentro de Xên, bêbado de desejo... Não percebo que ela está se despedindo e semi-lúcido dou tchau com a mão bamba, cotovelo apoiado na borda da mesa, olhos fixos naqueles tecidos que denunciam bunda de menos e calças demais.

Foi embora! Meu troco chegou e eu nem lembro de ter pago, a secretária do Ozório está com meio palmo de língua para fora, chiclete na ponta, e pega minha mão pela centésima vez nos últimos sessenta minutos. Desgraçada, culpa dela se a Xênia não vai usar lenço no pescoço amanhã! Perdi, posso esquecer. Somos os últimos a sair e a secretária me pede carona até o metrô. Estou bêbado e digo que sim, se ela deixar eu chupar seu pescoço até ficar marcado. A ruminante ri alto, faz malabarismos com o chiclete na língua, eu sinto ânsia e ela agarra definitivamente a minha mão.