TRAJE
DE GALA
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Bárbara
Helena
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Entrou na loja com o coração aos saltos. Na vitrine mais alta, seu objeto de cobiça por tantos anos. Apertou o cartão na mão suada. Um vendedor surgiu, como o gênio da lâmpada, sem que percebesse de onde. Tinha o ar de gentileza profissional e tédio de quem não esperava boas vendas "Quantos vidros e rostos meus envelhecidos". Vergonha do terno amarrotado de trabalho, do cabelo grisalho, das mãos calejadas. - O senhor quer ver camisas? Prático e eficiente, arregalou os olhos na resposta do incompleto freguês: - Quero aquele fraque. O da vitrine. - Pois não (escondendo o riso) "será que este coitado sabe o preço daquele traje? Nem vários meses do meu próprio salário pagam...". Abriu o vidro e retirou do manequim o casaco de longas abas, a gravata de plastron, o colete branco, a camisa, a calça listrada e até a cartola e as luvas. Divertia-se de certa forma. - Vai experimentar? - Vou. O outro deu de ombros e orientou-o pelo tapete aveludado até a cabine de provas. Espelhos refletiam seu rosto magro e acentuavam as rugas. "ameixeiras rosadas em algum cartaz... música suave" O vendedor saiu, mas a respiração profissional podia ser percebida atrás da cortina. "Tem medo que eu fuja pelas ruas do centro com um fraque não pago... folhas caíram em algum lugar... outono" Despiu-se das roupas antigas e vestiu com cuidado o as calças, a camisa, o colete, a gravata (treinara tantas vezes). Depois colocou o chapéu e as luvas. Era outra pessoa. O vendedor abriu a cortina e seu tom mudou. - Gostou, senhor? Acho que ficou perfeito. - Ficou sim, vou levar - "Volta o verão, os mares, jovens morenas, flores" - voz de quem vestia um belo traje de gala. O vendedor se curvou, humilhado. "Sou rei, imperador. Valeu a pena" Tantos anos de economia, luta, bolhas nos pés, tirando da condução para caminhar, deixando de almoçar, juntando cada tostão para este dia de glória. Os modelos mudaram pouca coisa e o fraque se mantinha na mesma vitrine daquela loja, esperando a hora. "Tantas horas no lixo, agora é sempre" Vestiu de novo a roupa velha, entregou o cartão ao vendedor que sumiu nos fundos da loja. "Tem fundos, sim, meu filho. Foi muito tempo de preparação." Mas não disse nada. Um homem com um casaco daqueles não se rebaixa diante das ameixeiras. O rapaz voltou cada vez mais solícito - "deve ser milionário excêntrico". - Quer que entregue em casa? - Não é preciso. Vou levar agora. Embrulhe para presente por favor. Saiu da loja, a sacola pesando alegrias. Em casa, mulher e filhos não acreditaram: - Mas pra que você quer uma roupa desta, homem de Deus? Pra usar aonde? E como vai pagar? - Está pago. Economizei anos para isto. - Podia gastar este dinheiro em coisa melhor, mais útil: uma geladeira nova, um micro-ondas... - Um celular com câmera, uma prancha - um perfume francês... "Vozes longínquas vinham das ondas.. perfume de café" Olhou a cozinha velha, a geladeira descascada. Não pertencia mais àquele lugar. Apertando o embrulho, saiu caminhando no sol, calor sufocando a mágoa, peito apertado. Estranhava o corpo magro de trabalhador, não combinava com seu novo estilo. Passou as mãos calosas no tecido nobre. "sou príncipe... sou rei..." Andou mais alguns passos e entrou no bar. Emborcou uma cerveja e foi ao banheiro. Com cuidado para não encostar em nada, vestiu o traje de gala. Atravessou o botequim, sem notar os olhares, morador de si. Andou muito tempo, sereno, seguro, ignorando o desconforto, o calor, o suor proletário que manchava a camisa sob o casacão, abas revoluteando quando apertava o passo. "em mim... em mim" Finalmente caiu, de uma vez só, varado por dor mortal. Foi enterrado com o novo traje. Os filhos protestaram, mas a mãe fincou pé, olhos vidrados de saudade surda, rainha desterrada. Fez questão de fotografá-lo no caixão para o album. Os amigos disseram que nunca pareceu tão bem, apesar de morto. |