DESVIO
Teresa Maria de Magalhães Araújo
 
 

Mariana e a amiga acomodaram-se no ônibus. Nos últimos dias, sofria pelo sono intermitente, fracionado por pesadelos aflitivos. Estava no limite da ansiedade, embora simulasse leveza, o que era dor multiplicada. Inequívoca ou não, a expectativa de certas situações era o estopim para a angústia. Sonhava com um filtro que a poupasse de determinadas sensações. Inútil. O ferrugento compromisso de viver em voz alta era um tributo do qual queria se libertar. Jamais se acostumaria com sua voz, ouvida do íntimo de si mesma - achava-a delicada demais para comover as platéias. Sentiu um oco na boca do estômago, ao se lembrar que a palestra seria no dia seguinte, mas recordou-se da fala bem humorada de um amigo: - 'Depois a gente descobre que o melhor da história é o frio na barriga.' Sorriu, por dentro.

Lilá, sentada ao lado, revelava intimidades. Um discurso profundo, bem engendrado -desvestia segredos de família. Mariana sentiu enjôo, uma vontade indiscreta de urinar. Ir ao banheiro ali? Não! A espera. Arre!. Escapava para o verde-ondulado, através da janela. A amiga continuava o relato. Ouvia-a, contudo estava frágil demais para suportar o ônus da revelação. Achava desolador adivinhar o abismo das pessoas. Fugiu para um tempo de alegrias, dentro de si.

Estava nesse embaraço íntimo quando o carro parou. Sentia um pouco de náusea, mas a vontade de fumar era maior. Desceu e, antes de ir ao banheiro, acendeu o cigarro.

O céu de inverno escancarava o sol, cujo brilho pousava nas coisas. Franziu os olhos ofuscados por tanta luz. Os óculos escuros sombreariam o cenário. Ufa! Sentou-se no banco, deixou a calma descer. Por que se mortificar? O calor solar a confortou.

Uma loura cuidava de dois cachorros da raça Terrier. Pessoas sonolentas saíam dos ônibus que chegavam. Jovens, velhos, crianças. Fumantes passavam por ela, com a silenciosa cumplicidade de quem, se verbalizassem, lhe diriam: --Você também? De repente, um homem alto, champrudo, barba grisalha, chamou sua atenção. Fumava. Vinha trôpego como se bebera. Aflito. Seu olhos se encontraram por um instante, apenas. Sentou-se no banco ao lado. Que figura familiar! A percepção daquela imagem meio forte, meio frágil veio impregnada de lembranças e um desagradável desconforto. Conheço-o! Teve dúvidas, mesmo assim resolveu abordá-lo. Era o amigo de infância, o eleito entre tantas fisionomias absolutamente desconhecidas. Manobra surpreendente da memória: o nome dele veio à tona, ao se aproximar.

- Olá, Gilberto, lembra-se de mim?

Silêncio. O olhar investigativo estranhava-a. Tinha as mãos trêmulas aquele homem tão alto e troncudo. Assemelhava-se a uma criança vulnerável.

- Não se recorda? Sou Mariana, da família Olivério. Tirou os óculos escuros, enquanto falava. Pensou se ainda lhe restara alguma graça adolescente. Fomos colegas de escola.

- Agora sim. Como vai, Marianinha? Esboçou um sorriso pálido, quase dissipado entre os músculos tensos do rosto. As pernas moviam-se num ir-e-vir incessante, desvelando-se em agonia.

- Vou bem e você?

- Não estou bem. Ando cansado, muito cansado de tantos compromissos. Vou à capital, assinar papéis. Depois reuniões, reuniões, reuniões.

- Está sozinho?

- Não, com o motorista.

- Menos mal, ela sorriu.

Calaram-se. Nada a dizer. A moça desejou felicidades e foi embora.

A viagem seguiu enfadonha. Foi pensando no amigo e em sua estranheza. Lembrou-se dele menino, época em que já mostrava paixão pela política. A parceira de trabalho, pessoa sensível e densa, também se incomodou com as esquisitices do homem. Havia algo muito enigmático na inquietude dele.

Chegaram ao destino. A palestra foi o antecéu para a sua auto-estima. Voltou carregando a alegria do dever cumprido.

Bom retornar a casa. Aspirou o perfume silencioso da solidão, cada coisa quieta, em seu costumeiro lugar. A cama larga, os travesseiros fofos, a TV no quarto, livros na cabeceira. Ficara sem notícias do mundo, enquanto esteve fora.

No meio da madrugada, o telefone. Era Lilá.

- Mariana, estava dormindo?

- Não.

- Imaginei. Qual o nome do seu amigo, aquele que encontrou no caminho para Minas?

- Gilberto, por quê?

- Você não vai acreditar. Ele morreu. Suicidou-se!

- Suicidou-se?

Lilá narrou a notícia publicada no jornal local. Jogou-se do vigésimo terceiro andar de um Flat. Casado, jovem, sem filhos. Prefeito.

Mariana ficou triste. O olhar dele, naquela manhã, prenunciava a morte. Sui caedes! Que agudo sofrer levou-o a tirar a própria vida? E ela? Por que haveria de encontrar aquele homem, que há vinte anos não via, justamente no ápice de seu desespero?

 
 
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