PEREGRINAÇÃO EM TARDE CHUVOSA
Tatiana Alves
 
 

"Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio". A célebre frase de Heráclito, em meio à tempestade que insistia em fustigar o Rio de Janeiro naquela tarde de março, soava quase irônica, mas foi a primeira coisa que lhe veio à mente ao atolar a delicada sandália em uma poça de lama ao atravessar a rua. Acabara de deixar a solene biblioteca onde tantas vezes o encontrara, e seu raciocínio ainda padecia da nostalgia que dela se apossava sempre que por lá passava. O teto abobadado e as paredes ostentando brasões transportavam-na a outros tempos, quando não havia engarrafamentos a detê-la. O lugar recendia a passado, e certamente cada um daqueles livros guardava histórias e segredos muito maiores do que os descritos em suas linhas. Olhou mais uma vez as paredes impregnadas de tempos pregressos, antes de descer as escadas que a separavam do burburinho. Destoando da maioria dos cariocas, ela sorriu ao respirar o inconfundível aroma trazido pela chuva, que parecia querer varrer a atmosfera naquele início de outono.

Apesar de ser litorânea, era o Centro a parte da cidade que mais lhe chamava a atenção, com suas diferentes épocas a dialogar, com insólitas construções pós-modernas dividindo espaços e gostos com prédios antigos. E naquela tarde, em que a solidão tornara-se uma companheira insuportável, ela abusara do masoquismo. Em sua saudade, cometera atos de pura insensatez: como numa peregrinação religiosa, revisitara os lugares que juntos freqüentavam, na vã ilusão de encontrá-lo por lá. Lugares antes habitados pelo nós, e que hoje amargavam a solidão do singular, parecendo ainda mais tristes, lacunares, ímpares, despedaçados, sem a parcela de vida que dele brotava. Não era diferente com o singelo café que ficava ao lado da biblioteca, palco de tantas conversas e devaneios.

Levantou os olhos do cardápio para, ainda uma vez, buscá-lo à rua. Sentia a frustração de quem é deixada à espera, como se tivessem faltado ao encontro marcado. Cada cabeça grisalha convertia-se no seu retrato, sem que ela jamais o reencontrasse... Como o pico de um monte imponente que se mostrasse, ao fim de tudo, mera colina, despojada de atrativos e de plenitude. O cinza da tarde chuvosa fundia-se à lembrança de seus cabelos, e ela quase podia sentir o calor e o perfume emanando daquela nuca, numa silenciosa tentação, num mudo e tácito convite...

Refazer tais caminhos transformara-se numa tortura, à qual ela se lançava sem perspectivas, como se a falta que sentia dele fosse capaz de trazê-lo de volta, com a urgência e a intensidade do temporal que se armava lá fora...Com a urgência e a intensidade da tempestade que trazia dentro de si.

Desceu do táxi longe de casa, a fim de caminhar um pouco. A Lagoa, tão festiva em dias ensolarados, formava um triste dueto com a neblina que prenunciava o anoitecer. O Rio gris é, definitivamente, mais belo, pensou. Aproveitando a trégua concedida pela chuva, caminhou até as margens da Lagoa. O espelho d’água, turvo pelo céu acinzentado, mostrava-se resistente à contemplação. Tentou mirar-se na água, muito embora soubesse que o rosto que veria não seria o seu. Ao olhar a imagem refletida, lembrou-se da maldição de Narciso e soube-se a amante que contempla o outro em vez de si mesmo. Como a pobre Eco, vagava pelas fendas e rochedos do inconsciente, repetindo, à exaustão, palavras incapazes de demovê-lo de seu estado de torpor. E assim ele mantinha-se impassível, enquanto ela mais e mais mergulhava dentro de si, agarrando-se aos ecos e vestígios do amor de outrora.

Chorara tanto que o gosto das lágrimas se tornara familiar, algo mais palatável do que qualquer outra coisa naquele momento. As lágrimas corriam livremente, como crianças que brincam de escorrega. As gotas desciam, seguindo seu fluxo inexorável, sem a cadência do corpo, que de resto já achava que não valia mesmo a pena reencenar a velha dança embalada pela tristeza. A água acariciava-lhe as marcas faciais acentuando-as, à semelhança das pequenas gotas de chuva que não aplacam os sulcos abertos na aridez do sertão. O coração, esse, parecia mesmo estar habituado às sucessivas punhaladas, e resignava-se diante de mais este sacrifício. Uma expiação sem fim, pensava ela, em que o ritual era sempre reatualizado, sem que o ser imolado fosse jamais substituído. A cada golpe desferido, vinha a sensação de que seria o derradeiro, de que não suportaria mais nenhum. Mas ele parecia cada vez mais fascinante, e ela deambulava, errante, pelos labirínticos caminhos da paixão.

Amara-o desde a primeira vez em que o vira. Amara-o de forma ousada, intempestiva, dionisíaca, embriagando-se do êxtase que sua imagem lhe propiciava...Cativa talvez de um desejo ancestral, embevecia-se ao mirar o furta-cor daqueles olhos garços, que para sempre lhe haviam furtado o direito de amar. Renunciar a ele, à representação de tudo o que ele constituía, significava renunciar a tudo aquilo em que sempre acreditara, e uma parte de si - talvez a mais bela - estava sendo mutilada nesse processo. Mas isso se fazia necessário, pois se imaginava, num cais, há tanto tempo aguardando, que já perdera a noção do que era encontro, do que despedida... E, sem a perspectiva da chegada, restava a ela partir, numa renúncia que era, agora, sobrevivência.

Mas ela era uma filha de Afrodite, movida pelo amor, e de nada adiantariam os avisos de Pandora, que lhe acenava com sua caixa repleta de males...De nada serviriam os sensatos conselhos de Atena, racional e equilibrada... Em nada lhe inspirava a castidade de Ártemis, com seu jeito guerreiro porém solitário...Apenas Perséfone, de tanto descer aos infernos, fosse talvez capaz de entendê-la...Como esta, também ela constantemente descia às profundezas, com a diferença de que não havia Hades algum a raptá-la...Ia por vontade própria, o que tornava seu mergulho ainda mais insensato.

A chuva reiniciara. Tomou o caminho de casa, pois a peregrinação daquela tarde a havia exaurido. Olhando para cima, sorriu. Nem tudo estava perdido. Sempre lhe restaria o Cristo, num alento, a ampará-la, no mais carioca dos abraços.