O HOMEM QUE SABIA PORTUGUÊS
Creso Abreu
 
 

- Acerta o passo, "Zebedeu"!

Quase duas centenas de alunos dos cursos primário e ginasial do Colégio Comercial Timbaubense deveriam estourar em gargalhadas, mas era impossível. De pé, ao sol da Zona da Mata pernambucana, o homem transmitia uma gravidade absoluta em seus setenta e tantos anos, a observar aquela saraivada de garotos em "ensaio de marcha" para o Sete de Setembro. Início dos anos 70, tempos de ufanismo, de Brasil Grande, aquelas coisas, mas nós éramos crianças, e só entendíamos de criancices - graças a Deus...

"Zebedeu" (ou "Zé Bedeu" como a gente preferia), era qualquer um que errasse a lição. Ficávamos espremendo o riso.

- "Sêo Paulo Simplício! De que é o que o senhor está sorrindo? Vá para casa. E somente volte aqui com seu pai ou sua mãe. Isto aqui não é circo de cavalinhos.

Chamar menino de "senhor", não há moleque que agüente. E sem contar o tal "circo de cavalinhos". Mas ninguém era bobo de desafiar o homem. Ali estava, implacável, o lendário José Mendes da Silva, diretor escolar, disciplinador, professor de Português, Matemática, História, Geografia, Ciências e Contabilidade. Lenda viva em Timbaúba, Aliança, Ferreiros, Camutanga e outras adoráveis cidades da Zona da Mata Norte de Pernambuco, dos anos 30 aos 70.

Os mais antigos também contavam que o homem fora professor de Taquigrafia. Diziam também que tinha sido grande goleiro. Volta e meia, ainda opinava nas aulas de Educação Física - dos rapazes, claro. Nossa fantasia eterna (e que às vezes, com algum esforço, se tornava realidade) era ver as meninas fazendo ginástica com a professora. Mas isto somente olhando escondido por cima do muro do colégio. Mas ai de quem fosse flagrado por José Mendes...

Naqueles dias mais avançados de sua idade, tinha cismas de músico. À noite, podia ser visto com um indicador em cada ouvido, a detectar se os metais desafinavam nos ensaios da banda do colégio. A banda era consagrada, premiada em concursos, um deles numa inesquecível manhã de domingo, em Recife, na praça do Derby, com televisão ao vivo e tudo. Metais desafinados na banda, no entanto, jamais fugiam ao crivo do seu patrono e diretor.

Minhas lembranças de menino sempre incluem os desafios que José Mendes nos fazia, ao substituir ocasionalmente algum professor faltoso. A presença do nosso diretor era uma honra para qualquer turma, muito embora pudesse se tornar uma situação embaraçosa, porque vinha saia justa na certa.

Em nossa turma, com os garotos ainda obrigatoriamente separados das garotas por duas filas vazias de cadeiras, poucos duvidavam que o "professor Zé Mendes" era a maior expressão viva da chamada última flor do Lácio. Ele entrava discretamente na sala e escrevia no quadro: "Saudade: idiotismo da Língua Portuguesa".

- "Sêo" Arruda. Porque é que "saudade" é um idiotismo da Língua Portuguesa?

Risos e risos, nem sempre contidos. E o tal já pressentia a gozação.

- Não existe nada idiota aqui, "sêo" Arruda. "Idiotismo" é palavra ou expressão própria de uma língua. Procure estudar.

Ou nos atordoava completamente, escrevendo no quadro-negro: "Como como comes comes como como como comes como como como como comes".

Demorava até que os pontos e vírgulas de alguém trouxessem sentido àquela babel de "como e comes"...

Ou então vinha com a infalível: "O fazendeiro tinha um bezerro e a mãe do fazendeiro também era o pai do bezerro."

Até que alguém mais aplicado entendesse que deveria existir um ponto após "mãe", eu já tinha me divertido um bocado.

E como o tempo passava rápido! Tudo colocado com um adorável falso rigor, uma legítima encenação de mestre ranzinza, uma pantomima de professor carrasco que mal escondia o homem que víamos com os olhos em lágrimas quando a banda do colégio parava em frente à sua casa, em meio ao desfile, e executava um daqueles dobrados que ele chamava de "marciais".

Tratava polidamente a todos, a despeito da fama de "linha dura" com os alunos, fama na qual os adultos fingiam acreditar, para nos amedrontar. De origem simples, conseguia ser respeitado pela burguesia do açúcar e dos sapatos ainda existente à época naquelas paragens. Pais que confiavam plenamente seus filhos aos cinqüenta anos de magistério do mestre, muitas vezes retardando sua ida para os estudos no Recife.

Com os pais pobres, era atencioso. Vários dos meus colegas de infância foram bolsistas integrais. Não tendo pretensões intelectuais avançadas, pautou sua vida com o sacerdócio da disciplina e da dedicação, mantendo por décadas um educandário que se tornou referência, por gerações inteiras. Meu pai, meus tios, minhas tias professoras, por fim, eu próprio, meus irmãos e meus primos, famílias inteiras alunas do Homem que Sabia Português.

Nostalgia... Melancolia... Claro que sim. E que bom. Como seria saudável que nossos modernos educandários, tão cibernéticos e atulhados de professores "tios", tivessem pelo menos de vez em quando a velha figura paterna do professor - aquele que nos ensinava maravilhosos lugares-comuns, coisas assim como que os fins não justificam os meios. Como que o conteúdo é sempre mais importante que a forma. Coisas que esquecemos, e que não temos mais quem nos lembre.

Continuaremos tentando "acertar o passo" na vida, evitando tomar a direção errada em determinadas esquinas, conforme nos alertou longamente o velho professor? Espero que sim. Afinal, "ao Mestre, com carinho", também é um lugar comum, porém é um dos mais belos que se conhece.