EXERCÍCIO
DA NOITE
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Adelaide
Amorim
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Mato adentro. Os longos capins acompanhando a estrada do lado direito, claros na noite, refletindo um pouco da luz dos faróis. Fantasmagóricos. Vagamente mais claro mas inequivocamente capim. À beira da estrada arbustos, sebes, moitas e muros, muralhas de pedra e de concreto - muralhas altas, fortes, imbatíveis muralhas. Os xaxins daquela casa de esquina de estrada debruçados sobre o caminho, fechando todo o quarteirão, eivados de samambaias e lélias, parasitas e plantas silvestres. A noite. A vista da Barra iluminada em colares de lâmpadas, luzes enfileiradas, serpentes de luzes e luzes isoladas no meio de uma escuridão que de longe parece pequena como poça. O recorte da avenida reinventado por acaso. Tudo visto de longe fica recriado. Uma espécie de coro infantil em sustenido bem agudo espocou em sua cabeça. O engulho de silêncio desmoronava, interrompido de chofre como um acesso de soluços. "Amanhã começo uma nova tela. Amanhã começo uma outra vida. Amanhã viro outra pessoa e deixo de me arrastar miseravelmente em dependências. Vôo sozinha, vou voar sozinha, vou voar amanhã." Voltou o rosto para fora e mergulhou na noite, vento na pele secando os lábios, incomodando nos olhos. Abriu-se para a estrada como quem toma um novo rumo antes do amanhecer, bem cedinho ainda escuro. Tudo estava ainda fechado. "Embalagem de presente, presente para mim que chega amanhã, que abro amanhã de manhã. Impossível ver através do papel de embrulho, mas é minha nova vida embrulhada em treva. Nenhum prodígio é possível aqui e agora, só as pessoas da Idade Média e do sertão é que tinham ou têm tais poderes. Nem tarô nem mapa astral. Hoje em dia é tudo aqui e agora. Ai, que aperto no esterno. Nem sequer posso dizer o que sou, e meu crânio pode explodir a qualquer momento e sujar o carro todo, tal a pressão." Riu de leve sem mexer a boca. Toda direção escolhida é um descaminho; podia ser outra, não podia? Então não é outro caminho, mas o caminho escolhido: não é o ex-caminho, esfuminho e escurinho: é o caminho logo clareado em outro dia. Todo dia rematado é um dia a menos. O primeiro dia do resto... "Se deixar que o mundo dirija meus passos, o que será de mim? Serei outra em vez de ser eu mesma? E o que tenho sido até aqui?" A secretária de meu antigo chefe escrevia frases feitas com letra de freira foragida do convento. Hipertireóidica, de olhos esbugalhados e riso histérico. O primeiro dia do resto de quê? Vai ver ela mesma leu e transladou para que outros fizessem o mesmo, tem gente que faz até corrente com esse tipo de pensamento corroído e corrosivo. Mas todo mundo sabe e como dói saber: não é a minha vida, não é a vida dela, é a vida que nos deixam viver - filosofia barata de botequim. "Escolhi outro terreno que não é aquele que me ofereceram. Capino o terreno que escolhi, pronto. Só cresce aqui o que eu quero e agora me sinto pobre, nem olho para os lados. Meus pecados se apagaram num azul distante de montanha como o do poema do colégio. Por algum tempo flutuei salva de mim mesma e bem-aventurada, mas não dava para agüentar: era mentira. Não era sonho nem deslumbre, era mentira mesmo. Acordei balançando numa rede sobre o abismo. Já não há montanhas à vista e desci arduamente ao plano, à garganta e caminho para a terra firme do vale que é onde gosto de viver. Não há leite morno à noite que me salve da escuridão." Agora havia dores de parto na noite escura, mas eram dores provisórias como todas as dores de parto, e também definitivas como todo parto e seu produto. "Como quero bem a mim não quero bem a você que não é eu e quer me converter a você. Você não é eu e não sou eu quem vai virar você. Se ao menos você pudesse, talvez também eu pudesse - mas é melhor esquecer. Teus objetivos não me incluem se não for eu feita você. Ou será que estou vendo o que não está nem no horizonte? Acho que não. Não mesmo. Passa na tua cabeça incluir alguém além de você mesmo em teus objetivos? Só mesmo quem se dispõe a servir a eles e quer ser sugado, parasitado e extinto na forte correnteza de teu mundo particular. Teu mundo tem correntes de oceano. Teria sido fácil amar sem tantas correntezas, fácil flutuar sem medo num espaço aberto, mas não era o caso." Pés de capim subindo bem retos à direita da estrada. Capim buscando o céu, coisa ordinária em exercício de alongamento, empertigadas criaturas sem nome. As criaturas sem nome podem ser felizes? Sofrem além da sede? O desprezo não as atinge, nem isso podem sofrer, por mais que se alonguem. A limitada liberdade de se alongar. Não vêem nada com olhinhos de clorofila. "Às vezes penso que tudo, mas tudo mesmo, até as bactérias e os protozoários são réplicas ininteligíveis do homem. Alguém já pensou e disse isso, não me lembro quem. Micróbios de bigode, camarões falantes, fibras lenhosas sentimentais, pedras que riem de rolar. Eu nunca feliz contigo. Uma pedra teria sido mais. Um capim teria se alongado sem problemas a teu lado e nem ia querer ser percebido em sua liberdade de capim. Quando pensei que era livre caiu na minha frente uma figura desprezível que ainda não conhecia: era eu mesma diante de um espelho assustado com o que via. Enquanto isso, dentro das moitas bichos noturnos orquestram suas vidinhas. Antigamente eles eram parte de um concerto glorioso. Agora, depois que descobri o que sou, só amanhã vou saber como ficam os bichos da noite e os do dia, os de perto e os de longe." Amanhã começa outra vida. Uma vida que rói as vísceras, uma ansiedade florindo em uma redoma. A noite veloz só anuncia: coisas novas chegam amanhã. "Como será te deixar para trás? Como será deixar de doer assim caladamente e passar a doer em liberdade e colocar-me no meio da noite como quem tem um lugar escolhido? Como será estar onde se deseja? Será que acaba alguma porção de desejo por isso? A vida se adianta como uma ilusão de óptica e renasce sempre mais adiante para chamar para mais longe. Ilusão vivi eu até agora. Talvez descubra que chegou o fim. Não haverá mais nada a desejar? A não ser que o desejo seja como um capim da alma (pensamento cafona). Agora vai haver tudo a desejar. Agora me darei ao luxo de desejar, já estou me dando a um luxo a que não estou acostumada. Mil vezes já passou esta noite. Mil vezes ela foi ensaiada em desespero e paciência e agora chegou e dá certo. Um pouco de temor do desconhecido, é verdade. Uma felicidade corrosiva e difícil. Como será recomeçar o que nem se conheceu? Minha vida é uma trama oriental de muitos tapetes e você me ajudou a tecer esses fios de tantos verdes, tantas agonias como grandes estofados bizantinos num palazzo veneziano numa casa alagada de medos minúsculos. Não me apresento como uma boba para tua aprovação, não fujo como em outro tempo e também não suspiro por você. Estou em outra dimensão da vida, uma dimensão que você não conhece e não vai tentar interpretar de acordo com suas próprias tramas, mesmo porque não te interessa. Agora preparo mosaicos em imensos painéis que podem soltar-se a qualquer momento e preencher o céu com seus desenhos sem utilidade prática nenhuma. Posso me dar ao luxo. Não faço mais o que você quer: faço e pronto, faço o que faço sem razão nenhuma que não venha de meu próprio desejo. A glória que você podia me oferecer é uma grande morte com que não conto. Vou voar em outra direção, talvez na direção do capim que se alonga, e minha imagem vai renascer disso. Ainda não conheço as imagens de meus painéis. O resto se abre como um céu indefinido porém já um céu porque você não está nele." Estradas esquecidas que o carro desperta, luzes caladas que se realizam, estados casuais, verdadeiros sem nenhum esforço ou discussão. Vive-se bem assim. Estados lassos, sonolentos que passam velozes, quase sem tempo. "Apercepções, quero experimentar isso. Pressentimentos noturnos como flores invisíveis de copas muito altas. Como você é bobo. Como é fútil. Pensa que sabe tudo. Pensa que já decidiu o destino do mundo. Não tem sequer os diagnósticos porque o espaço é pouco para o mundo e você." Bom começo é relaxar os ombros e mesmo que tudo volte sempre incontavelmente, terá havido o toque, a mudança. Alguém vigia, há vida lá fora: um cão de guarda está prestes a se revelar e seu salto se adiou até o limite. Um golpe traiçoeiro derrubou o dono da noite. Amanhã é outro dia. |