O
FEITICEIRO AFRICANO I
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Thaïs Martins
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Introdução Aqui é Inverno, vento frio, flores mortas, tudo seco, e, até que chegue uma outra primavera, eu me recolho em doce melancolia. Os jardins de minha casa estão cobertos pelos restos que caíram dos meus pés de hera, cheios de raízes, que formam desenhos em um antigo muro de arrimo. Olhando-os, eu acesso outras memórias, vou bater bem fundo, num ponto da minha alma, onde guardo reservas de energia. É lá que o reencontro, em meio às folhas vermelhas de plátano que formam um tapete sobre a estrada. Vamos entre árvores inclinadas, que se enlaçam colorido e formam um corredor quase infinito. Andamos abraçados, rindo e brincando de casar luz e sombra. Mudamos de posição a toda hora, para que a imagem projetada no chão seja ora de um, ora de outro. E, desta forma, a gente proclama que não leva tão a sério o que pensa que acredita. É que ele se ocupa, com freqüência, em provar que a luz é negra e a sombra branca, conforme aprendeu quando criança. Conta, achando graça, que na escola rezava: - "Obrigada Senhor por ter me feito negro, pois negra é a luz e, também, é negra é cor de todos os dias." Uma inversão simbólica que seu clã elaborou para reafirmar a beleza de sua identidade. E, até mesmo agora, que faz doutorado na França, afirma para encerrar qualquer discussão: - "Nem o arco-íris me convence do contrário". Esta estória é para ele uma questão moral, daí atribuirmos ao sexo estes seus valores. E que espanto, neste jogo eu sou a sombra, já que ela no seu mito, é branca. E foi esta a condição que ele impôs para me ensinar o que aprendeu, durante a tarde inteira, em que assistiu três sessões corridas de filmes pornográficos. Noite passada eu me entreguei. - Estou de acordo, respondi falsa, no livro azul do I Ching o feminino também é visto quase assim, venha, que para você eu sou a Terra, a Lua, o escuro e o vazio aberto. E todas as manhãs, como agora, logo cedo, vamos para a aula por nosso caminho mágico; ele, cheio de medo, desvia-se dos espaços mais velados e comenta, apreensivo. - Quem diria, nunca imaginei que Montpellier seria tão cheia de víboras peçonhentas. Eu, por mais que as procure, não as vejo naquele momento, ali na estrada; e começo a suspeitar que meu amigo as imagina. Ele aprendeu, através dos costumes de sua tribo, que os homens só podem tocar o sexo da mulher com o próprio sexo, tudo o mais é quebra de tabu. Os machos devem ser rudes com as fêmeas, nada de carinhos, nenhum beijo, comprometem a eficácia da macumba que carregam na barriga, um patuá que os protege contra o veneno das serpentes. Ainda bem que aqui, na França, estamos em território livre, aonde ele encontra asilo, prepara-se para defender os interesses da sua etnia e de seu país africano. E como somos simples amantes, só por algumas estações, não temos nada a garantir ou a disputar, no que se refere às regras de seu clã matriarcal e poligâmico; e nem se imagina que seus nossos parcos dinheiros devam ser enviados aos responsáveis de sua linhagem para garantir a herança dos filhos de suas irmãs. Aliás, muito em breve, somaremos o pouco que temos e iremos conhecer outras tradições, aquelas desta região da França, tão cheia de relógios de sol, de relíquias medievais, com sua velha Universidade, onde estudou Nostradamus. Perto daqui há lugares de onde partiram alguns Cruzados, viveram os Cátaros, suas histórias estão contadas entre os muros de cidades fortificadas. Há, também, um outro mundo, quase oculto entre as montanhas, dizem que é um espaço sagrado, que serve de ponte entre a terra e os céus, guarda a abadia de uma Ordem antiga, fundada por São Guilherme, primo de Carlos Magno. - Neste cenário meio gótico, veja que assombro, somos quase modernos, sincretismos ambulantes, e vamos ficar atentos, pode ser que a gente aprenda jeitos novos de trepar, estudando as paredes destas primeiras catedrais, encantado, ele comenta. - Creio que só em Paris, querido, vamos logo para lá. Caso a gente não encontre nada, iremos até a Índia, onde é certo. Vamos a Kajuraho, onde os templos exaltam o Kama Sutra, e aprenderemos, junto com os iniciados, toda sensualidade dos deuses, que se expressa nas inumeráveis figuras, que rodeiam as laterais dos prédios repletos de esculturas eróticas, respondo, quase de passagem comprada. Por enquanto ainda é cedo, misturamos costumes tribais à pornografia enlatada, que ele assiste em um cinema meio escuso, lá no centro, às nossas fantasias pessoais de adolescentes enamorados. Estimulados pelo sabor exótico de um vinho de palma e por um ungüento afrodisíaco, de gosto silvestre, gostamos de cavalgar o Mungú, nome de seu cavalo crioulo, que morreu picado por um bicho peçonhento, no meio da floresta, lá perto de onde moram os pigmeus. Para respeitar o que há de mais ancestral, temos o cuidado de não perder o ritmo, manter aquele mesmo do trote do animal, para que nosso espírito não se perca do gozo e nem fique nele prezo. De vez em quando, ele não consegue se segurar em mim, nesta hora suas mãos agarram os bicos dos meus peitos. Eles são "seios bons", estão além das interdições, doloridos, crescidos, como os de uma africana. Ele sorri toda hora, soa entre nós aquele doce e fugaz canto de felicidade; mesmo assim, vez ou outra, ele pressente uma naja africana que passa a seu lado. Para acalmá-lo, dou espaço a uma mulher negra, que mora em minha alma. Ela é cheia de riso, sensual e, até um pouco perversa, para provocá-lo brinca de Eva, oferece maçãs para a cobra imaginária. |