MONTANHA
|
Francine Ramos
|
Nas noites de festa, Clara subia a montanha íngreme sorridente. Era como se lá ela encontrasse algo novo, mesmo que essa rotina de subir montanhas não fosse nada original em sua vida. Assim, todo ano, na noite de São João, ela caminhava tranqüila pela rua e fazia seu adorável percurso montanha acima. Um ritual bobo: sem qualquer vestígio de anormalidades, luzes, sonhos ou fantasmas. Era apenas o caminho que os pés de Clara gostavam de seguir. Na primeira vez, há cinco anos atrás, a idade da menina Clara era considerável acreditar a que algo ruim poderia acontecer a ela; uma menina indefesa, solitária, na montanha escura. Mas os olhos grandes e atentos de Clara inibiam de si mesma qualquer sensação de medo. Era inverno, a lua estava escondida pelas poucas nuvens que persistiam no céu, há dias as noites estavam assim: uma repetição perfeita entre o crepúsculo, o primeiro farol de um carro qualquer, a luz da TV iluminando qualquer casa, os postes, os passeios dos gatos, cachorros e ratos pelos cantos desertos da cidade. E os olhos da menina dos cachos negros a cintilarem avistando a montanha da janela do quarto. Na primeira tentativa, Clara foi interrompida pela sua mãe antes mesmo de fechar o portão da casa. Tudo porque a mãe olhou o caderno da escola e viu os erros de matemática, exigindo que Clara os refizessem imediatamente. E assim foi a primeira noite, onde Clara solitária sentia a montanha lhe chamando da janela do quarto. Na segunda noite seus olhos de menina esperta indicavam uma perfeita naturalidade que mãe alguma poderia imaginar: Clara passou o dia em seu quarto, lendo revistas antigas, olhando o relógio e a montanha, numa seqüência cansativa que a fez cochilar várias vezes durante a tarde. Mas dessa vez não existia exercícios de matemática para atrapalhar. E assim aconteceu: Clara saiu de fininho enquanto sua mãe entretinha-se com a novela e os pontos de tricô. A menina dos olhos grandes e cachos negros vestia um lindo vestido de lã azul claro, com um casaco rosa por cima. Seu sapato branco, quase amarelo de velho, combinava tão bem com seus pés redondos e tudo mais. Entretanto, o que mais vale a pena descrever era o seu sorriso meticuloso, sincero e tranqüilo a caminhar sem medo pelas ruas da cidade. A cada obstáculo, Clara saltava sorridente para o outro canto da calçada; a cada carro a lhe segar os olhos através do farol, Clara aguardava ansiosa sua vez de atravessar a rua. Eram gestos tão pequenos e tão belos! Desses capazes de nos entreter por horas e horas. Uma menina, tão vívida, a passear feliz pela cidade, sem nenhum motivo aparentemente forte para tudo aquilo. O que será que leva as pessoas a se sentirem assim? Felizes pelo simples fato de estarem ali: onde mais se deseja. Ou, ao menos, a caminho do lugar dos sonhos? |