COMPASSO
DE ESPERA
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Doca
Ramos Mello
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Há dias em que amanheço com a minha vida nas mãos e fico me perguntando o que fazer dela, como teria ela ido parar ali, a razão de sua existência, por que cargas d'água ela tanto me incomoda às vezes, para onde ruma, que vida é essa, desconhecida, anônima, arrevesada, minha... Dias outros, vejo-me arcada com a vida montada nas minhas costas, um bilhão de pensamento, palavras e sentimentos me pesando sobre os ombros, prontos para extrair-me todas as forças e eu, louca, sem rumo, dando murros em meus sonhos, pisoteando idéias, a escarafunchar loucamente o presente, o passado e o futuro, o que é dessa vida toda? E como a vida não se deixa abater nem derrotar jamais, porque possui um ciclo incompreensível de perene renovação, há aqueles dias em que me arrasta pelo pé sem trégua, faz de mim um instrumento para esquadrinhar todos os cantos dela que evito ver, e me desvenda os mistérios que tento não elucidar, de modo a me mudar os rumos na marra e me fazer dobrar a espinha para seguir pelos caminhos que ela determina para mim, caminhos que não identifico e por onde nunca estive por vontade assumida... Muitas vezes, sorrateira e pertinaz, ela me pega pelo estômago, disposta a torturar-me as vísceras e envenenar-me o sangue, metendo dentro de mim um redemoinho que não me permita ver que rumos toma, tal qual um mar que me invadisse sem limites, tsunami particular, tempestade, furacão. Dias há em que amanheço com a vida pelo avesso, me soprando idéias, o que não quero ouvir, o que cansei de ouvir, o que adoraria ouvir, o que de há muito finjo não ouvir, aquilo que vejo e não vejo, o que sei, o que ignoro, meus amores, meus ódios, então essas idéias se embaralham até que me arfe o peito, me entrecorte a respiração, e eu fico ali, procurando um norte naqueles rumores transformados em rumos, olhos de não ver, lágrimas secas, palavras sem som, sombras, labaredas, luz! Às vezes, anoiteço sem me despregar do dia, amanheço sem ter anoitecido, misturo emoções, tempos, espaços, lembranças, porque a vida me alcança o coração e a alma com a força de uma lâmina, o peso de uma rocha, os ventos, raios e trovões de um vendaval que termina com um sol escaldante a me torrar os miolos, obrigando-me a vergar minha vontade a mim mesma e a ela, distribuindo pedaços de mim diante do meu cérebro, dissecando minh'alma. Que persegue o mapa dos meus rumos cruzados, cheios de gente, histórias, fatos, sentimentos... De qualquer modo, a vida sempre me escancara os poros e faz entrar em mim o sopro de todas aquelas coisas que eu quero esquecer, lembrar, ver, viver, saber, conhecer, evitar, ver apodrecer, desmistificar, sorver, matar, estrangular, criar, inventar, acalentar nos meus braços, ver passar, adormecer, ir e voltar... Então, percebo que a vida é a inevitável prisioneira do corpo, do cérebro, da alma, onde serpenteia dia e noite para dar conta de sobreviver em mim e a mim mesma dentro de mim, até que se esgotem todos os impulsos que, para minha certeza de indivíduo, se enroscam na minha jornada, me dando rumos. Compreendo que a vida é só viver e ganho como alento uma doce melancolia que me apazigua o cansaço de ser nesta vida minha, vida eu, como todo mundo. |