COMO UM RETRATO
Carlos Bruni

O gato ainda dormitava perto da janela aproveitando uma nesga de sol que as cortinas deixavam passar e Analice, no ambiente silencioso da sala de estar, parou por um momento o trabalho de tricô que pacientemente vinha fazendo, olhando para o pequeno animal em seu tranqüilo ressonar. Parecendo vir à tona da melancolia a envolvê-la, sorriu tristemente pensando na forma como as coisas se encaixavam naquele ambiente: o silêncio do gato, sua própria tristeza, o ruído monótono do relógio de pêndulo a marcar o tempo de sua vida, o que a fez lembrar de uma poesia que lera ainda nos tempos do colégio interno falando de um velho relógio inglês. Tal lembrança a conduzia, inevitavelmente, para a posição de quem espera por algo que jamais viria.

Essa constatação levou-a a fazer uma comparação amarga: o gato, ela, o relógio, faziam parte do mesmo cenário. Eram, cada um deles, um pedaço de nada naquela casa, numa espera muda que, sabia mesmo nutrindo uma vã esperança, nunca chegaria ao término. Tinham vida eles, sim, cada qual à sua maneira, mas se fossem mudados de lugar ou mesmo retirados dali, não estariam alterando a situação de forma significativa.

Com um suspiro de resignação voltou às agulhas e ao pulôver que tricotava para o marido. Fazia isso com a mesma e exata monotonia de uma torneira que goteja interminavelmente.
Da calçada da rua, esporadicamente vinha o ruído de passos que cresciam para depois sumirem no silêncio da tarde, voltando tudo nele a mergulhar.

O gato levantou-se de seu lugar espreguiçando-se longamente, saindo num andar que só se permite aos felinos em tal estado de languidez, indiferente à presença de Analice na sala.

O relógio bateu cinco badaladas. Ela parou as agulhas e ficou a olhar seu mostrador, pensativa, para logo em seguida colocar o trabalho sobre a mesinha e preparar-se para o próximo passo. Já sabia de antemão o que iria fazer, tal era sua rotina.

Seu marido logo chegaria, ela o encontraria à porta da sala dando-lhe um beijo mecânico, repetição de muitos dias já passados. Isso feito, apanharia seu paletó e o levaria para ser dependurado no guarda-roupa; era como um ritual. Depois, a preparação do jantar. Ambos tomariam a refeição num ato instintivo de sobrevivência. Mais tarde , sentados na sala, ela de volta ao tricô, ele mergulhado no jornal, conversariam sobre coisas sem importância. Num canto, o aparelho de televisão displicentemente ligado tentando inutilmente fazer parte da família. A noite se encerraria e iriam dormir. No dia seguinte, tudo se repetiria.

Sem vontade alguma de levantar-se, ficou olhando para o relógio cujo pêndulo parecia reger-lhe a vida, como um maestro. Nada de excessos, nada de virtuosismo. O ritmo que lhe era imposto nunca mudava; a música, a mesma. O cenário, também imutável. Tudo parecia parado no tempo, tal como os retratos sobre a estante.

Cruzou as mãos sob o queixo enquanto olhava para as fotografias emolduradas, imaginando-se ela mesma presa numa moldura, inerte, apenas para ser vista por alguém que, vez ou outra, quisesse lembrar-se de alguma coisa.

A cruel analogia que tal situação criava entre sua existência e fotografias esquecidas pela sala expunha-lhe que sua vida não passava disso: um retrato mostrando somente aquilo que deveria mostrar. Não encerrava segredos e tampouco acenava com promessas. Apenas um retrato.

Lentamente ergueu-se e foi para a cozinha sem, talvez, se dar conta de que o cenário continuava o mesmo.

 
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