VITÓRIA
Beto Muniz
 
 

Faltavam-lhe as rugas coerentes com o tempo passando sobre a pele. Tinha apenas dois vincos profundos ao lado dos lábios, finos, quase másculos. Às vezes, quase nunca, para eventos sociais, ela passava um batom exageradamente destoante do formato dos lábios, do rosto, dos olhos. Enfeando o conjunto a agravante dos cabelos brancos nas frontes, logo acima das orelhas e caindo em franjas onde seriam as costeletas. Definitivamente não era bonita! Quando decidia mostrar alguma felicidade, parecia que o riso mordia e se transformava num assoviar entre lábios. Dentes branquinhos... Seria belo se ela soubesse mostrá-los. Vitória não sabia sorrir despachando a felicidade para além de suas laterais grisalhas. Não sei dizer exatamente como fui parar na cama dela, era pouco mais que um menino. Sabia nada! Na confusão das lembranças que guardo na mente, a rua Major Sertório, em meados de 1984, surge com suas boates, sua decadência e lá estou com algum amigo. Ambos sem dinheiro para pagar sequer as bebidas. As horas passam e apenas assistimos ao burburinho de freqüentadores subindo e descendo dos reservados. Mulheres em fila indiana oferecendo opulências que teimam em fugir dos trajes mambembes.

Uma vez por semana! Em dupla ou trio, o combinado era tirar sarro nas putas da boca do lixo. Eu bolinava seios, coxas, barrigas, empatando o lucro das biscates até ser desprezado pela falta de grana. Numa dessa o amigo tinha como pagar o uso do reservado e eu, após ser expulso, fiquei esperando, vestígios de inveja na gota de tristeza, encostado ao poste na calçada. De alguma janela, bailando no ar e impossível identificar a origem, escapava o lamento cortante de Maysa:

Meu mundo caiu
E me fez ficar assim
Você conseguiu
E agora diz que tem pena de mim

Uma saudade de casa! Do colo da mãe. Do abraço de uma das tantas Marias da adolescência. Maria, a última, que jurou não me esperar se eu viesse para a capital. O carro azul escuro encostou e pensei que estava estacionando, não estava, a mulher se entortou inteira para baixar o vidro e me olhar nos olhos. Deve ter perguntado se eu estava disponível, entendi ela perguntar se poderia ajudá-la e respondi que sim. Então entra. Entrar? É. Só então a ficha me caiu. Tentei explicar, mas a mulher não tinha tempo para conversas e deixou isso bem claro. Eu também não devia estar querendo me explicar direito... Maysa estava me deprimindo com sua doce melancolia. Melhor me afastar da Major Sertório. Entrei e fechei o vidro prendendo a música dentro de mim.

Não sei se me explico bem
Eu nada pedi

Sem nenhuma conversa fomos para o motel na Barra Funda, onde ela avançou sobre meu corpo como se fosse formiga carnívora. As horas passando e eu descontando nela meus meses de solidão paulistana. Tinha jeito de mulher rica. Talvez não fosse, mas ficava a impressão por culpa da cara lambida de quem atropelou o tempo. Hora eu achava estranho, hora achava feio, hora achava que estava envelhecendo com dignidade e hora a achava bonita. Nenhuma ruga, apenas dois vincos nos cantos dos lábios. Amanheceu comigo e se assustou com o sol. Como se eu fosse leproso impediu que eu me aproximasse, lavou-se, trocou-se e perguntou meu preço. Não tenho preço. Querido, até eu tenho um preço! - sibilou. Foi um engano, não faço programa. Como não? Estava esperando um amigo e você me chamou, eu vim. Pareceu que ia sorrir, mas o sorriso mordeu e os lábios assoviaram alguma felicidade. Só então notei os dentes, branquinhos... Seriam bonitos se não fosse a boca fina, quase máscula, e os cabelos grisalhos escorrendo por sobre a orelha emoldurando o rosto liso, sem as marcas coerentes com o tempo passando, drenando a mocidade de sobre a pele. Na saída o letreiro verde ainda acesso: Over Night. No peito um desafogo misturado com a sensação de pecado. De adultério! Maria se apagando na saudade e Maysa em sofrimento eterno na música de ontem.

Nem a você nem a ninguém
Não fui eu que caí

Nos encontramos outras vezes. Várias. Sempre às quintas-feiras, dez da noite, na Major Sertório. O monza parava, como se fosse estacionar, e eu entrava. Algumas vezes dizia que estava vindo de algum evento ou compromisso social e por isso o batom, forte, descabido. Eu não ligava. Sempre o mesmo motel, a mesma fome de formiga carnívora e o mesmo medo de lepra ao amanhecer. Insistia em perguntar meu preço - a língua bipartida tateando o ar. Nunca tive. Vitória mordia o riso.

Sei que você me entendeu
Sei também que não vai se importar

Dezenas de quintas-feiras depois ela faltou. Fiquei até quase sexta-feira esperando, um frio! Era 1985 e ainda existia garoa em São Paulo, depois foi se acabando e nunca mais garoou. Eu já esquecera as Marias de Minas Gerais e fora esquecido pela Maria, a última, que cumpriu a jura se casando com alguém que não viria para a capital, não freqüentaria a Major Sertório nem empataria serviço de puta. Também não encontraria o fantasma de Maysa surfando em acordes pela garoa paulistana.

Se meu mundo caiu
Eu que aprenda a levantar

Fui embora. Corpo em brasa, abstinência de formiga carnívora. Jamais voltei à boca do lixo numa quinta-feira. Era pouco mais homem. Sabia Nada! Nem a certeza se o nome dela era mesmo Vitória. Capaz que fosse.