TER
UM AMOR
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Luís
Valise
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Não é pra qualquer um, tá cheio de gente que nunca morreu de ciúme ao passar sob uma janela fechada. Que, estando numa mesa de bar com amigos, não saiu do corpo por alguns instantes, foi ver se o amorzinho estava bem, e retornou ao corpo e ao copo mais feliz que antes. Ter um amor. Eriberto Eliseu tinha um amor daqueles que crescem com as doses. Esse amor vivia quietinho num canto lá pelos lados do ventrículo, e só o Eliseu sabia de sua existência, porque às vezes dava uma coceirinha perto do mamilo, e o Eliseu, mais que coçar, acariciava o peito, enquanto dava um suspiro sem fim. Por momentos seus olhos adquiriam tons de aurora, seu lápis floreava a inicial do nome proibido num cantinho de página, sua mão roçava o telefone. Num canto da mesa, a foto emoldurada da Nicinha com as crianças paralisava o gesto, e o comichão no peito dava lugar a uma espécie de peso, uma âncora, uma pedra. Até que um dia (Nicinha devia estar distraída) pegou o telefone e discou. Alguém atendeu e ficou esperando. Disse três vezes alô. O silêncio se fez vermelho. O marido devia estar por perto. Eriberto sentiu calor na orelha, como quando ela passava a língua, de leve. Um beijo, tinha que ao menos mandar um beijo, e mandou: - Um beijo, meu amor. A sensação de perigo deixara seu rosto afogueado. Quando o telefone tocou, o remorso avisou que devia ser Nicinha, mas estava enganado. Uma voz de homem alto e forte não brincou: - Foi você que chamou aqui? - Eu? Aqui aonde? - Deixa de se fazer de besta. Foi você ou não foi? Negar, além de covardia, significava renunciar para sempre a outra ligação. A coceirinha no peito deu lugar à raiva, que chegou tão de repente que ele não se conteve: - E se fui eu, cê vai fazer o quê? Loucura, loucura, onde estava com a cabeça? Mulher casada, com filhos, não bastava a paixão que lhe tirava o sono, tinha que arrumar encrenca com o marido? O cara tava coberto de razão, aonde já se viu ligar para a mulher do outro e mandar um beijo? E também tinha a Nicinha e as crianças. O arrependimento chegou como um trem, ele achou que era melhor pedir desculpas, foi engano, deu número errado, mas o outro foi atropelando: - Olha aqui, é melhor que você e a vaca da minha mulher não tenham nada, senão eu mato! Ele não podia deixar que ela fosse chamada de vaca. Nunca. Partiu pra porrada: - Mata merda nenhuma! Eu gosto dela e ela gosta de mim. Pode perguntar! Pode perguntar! Do outro lado se fez silêncio, como se um corno tivesse nascido na garganta do grandão. Eriberto ficou preocupado: e se o cara batesse nela? Aquilo foi demais, e ele rompeu o silêncio: - Preste atenção: não encoste a mão nela. Não se atreva a encostar a mão nela! To indo aí, vamos resolver isso, na boa ou na bala. O trânsito estava uma caca. Eriberto teve tempo para repensar a situação, concluir que o que fazia era loucura. Nunca haviam conversado sobre abandonarem as famílias. Ele estava louco por ela, capaz mesmo de deixar Nicinha e as crianças, amor só acontece uma vez na vida, mas não sabia se ela também seria capaz de abandonar tudo. E agora era tarde, ele já estava chegando. A rua era tranqüila, a casa branca, com jardim na frente. Parou o carro e desceu antes que se arrependesse. Mulher não gosta de covardes. Tocou a campainha. O cara não era grande. Na verdade era baixinho como ela, miúdo, e saiu com uma faca na mão. A voz era de alguém grande e forte: - Você é macho? Você é macho? Ao chegar à calçada, preparou o braço para desfechar a facada, mas Eliseu tinha avisado: na boa ou na bala, então foi assim que ele fez, o revólver mirou o meio do peito do merdinha e foi um tiro só. Ela apareceu desesperada, gritando o nome do marido, nem olhou pro Eriberto, debruçou-se sobre o morto chorando, soluçando, querendo morrer também. Eriberto, com a arma pendendo na mão frouxa, perguntou: - Mas você não me ama? Ela respondeu como se fosse uma praga: - Eu jamais amaria um covarde! Eriberto começou a fumar maconha na cadeia. Nicinha não cumpriu a promessa, e depois de uns tempos ia visitar o marido. Fez com que ele pendurasse na parede, ao lado do catre, a foto emoldurada dela com as crianças. Ela consegue esconder o fumo em algum lugar, e quando entrega escondido diz pra ele que sempre estará à sua espera. Ele faz um carinho em sua cabeça, afinal ela tem um amor, e ele sabe bem o que é isso. |