AI,
QUEM ME DERA
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Daniel
Ludwich
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O horário perfeito de qualquer bar, em qualquer lugar do mundo, reside naquela hora incerta, naquele tempo indeterminado que se esconde entre a primeira hora da manhã e o pleno alvorecer do novo dia. É o momento em que o chope já se encarregou de deixar a existência muito mais leve, mais bela. Nesta estranha hora o tempo deixa de ser somente o tempo, ele já não pode ser aprisionado em relógios, ele está absolutamente liberto de qualquer limitação. O tempo deixa, enfim, de ser um obstáculo, um inimigo. O tempo se torna confidente e cúmplice de todos os grandes planos que iniciarão o seu curso logo que o dia amanheça. Todos os sonhos são, nesta hora, possíveis, todas as nossas utopias são automaticamente renovadas. Nem cheio, nem vazio. O bar estava com aquela quantidade perfeita de clientes: nem tão poucos que se pudesse distinguir as vozes, nem tantos que pudessem abafar o músico. "Ai, quem me dera terminasse a espera/ Retornasse o canto simples e sem fim/ E ouvindo o canto se chorasse tanto/ Que do mundo o pranto se estancasse enfim". E foi exatamente neste momento, quando a poesia de Vinicius já tomava todo o ambiente, que ela apareceu. Queria poder descrevê-la, mas não posso. É como se a sua imagem física tivesse abandonado completamente a minha cabeça e deixado em seu lugar apenas uma sensação. A descrição desta sensação, no entanto, exigiria um escritor maior do que eu. Resigno-me a dizer somente que ela era linda, mas não dessas belezas fáceis, frágeis, cansativas. Era toda ela uma beleza impregnada de personalidade, com um rosto que parecia cercado de mil mistérios e um corpo cujo movimento irradiava ao mesmo tempo timidez e segurança. "Ai, quem me dera ver morrer a fera/ Ver nascer o anjo, ver brotar a flor/ Ai, quem me dera uma manhã feliz/ Ai, quem me dera uma estação de amor". E foi com um passo determinado que ela se dirigiu à minha mesa, puxou uma cadeira e sentou-se ao meu lado. "Odeio beber sozinha" - ela disse, e por um longo momento foi só o que ela falou. Parecia tão perdida entre os versos do Poetinha quanto eu estava perdido em seus traços. Terminada a música, ela tomou um longo gole de chope e me sorriu um sorriso triste. "A noite está linda" - disse ela, agora sorrindo um sorriso bom e sincero. "Linda" - tive que concordar, embora naquele momento nada parecesse tão lindo quanto ela. Conversamos então sobre Vinicius, relembramos canções do Tom, cantarolamos algumas do Chico. Por vezes ela quase encostava a boca em minha orelha e ali, à distância de um respiro, recitava um verso antigo. Sua voz era linda, mas não era mais do que um suspiro. Tudo nela tinha a medida certa, como se ela fosse uma canção na voz e no violão de João Gilberto. "Ah, se as pessoas se tornassem boas/ E cantassem loas e tivessem paz/ E pelas ruas se abraçassem nuas/ E duas a duas fossem ser casais". Pelas longas horas perdidas no tempo inexistente, trocamos confidências, discutimos música, falamos de filmes antigos. Nossos gostos se casavam, nossas frases se completavam, riamos sem pudor das histórias mais bobas. Não posso dizer que concordávamos em tudo - pois isso seria muito chato - mas os pequenos desacordos eram apenas um pretexto para simular um desentendimento feroz. "Mas como é que você pode preferir Paulo Mendes Campos a Rubem Braga?". Concordamos em falar mal da Gal Costa, mas deixamos claro que foi ela quem começou. "Sério? Você também acha que Viúva porém Honesta é a melhor peça do Nelson?". Chopes, cigarros e a conversa irresponsavelmente jogada fora. Conversamos sobre tudo, até a hora em que nada mais importava. Éramos, enfim, os únicos habitantes de um mundo só nosso. Por um momento a cidade toda acordou e, após um breve segundo, pôde voltar a dormir tranqüila: ainda existiam pessoas que se amavam nesse mundo. "Ai, quem me dera ao som dos madrigais/ Ver todo mundo para sempre afim/ E a liberdade nunca ser demais/ E não haver mais solidão ruim". A luz que entrava pela janela teimava em queimar o meu rosto. Aquela conhecida sensação - mistura de sede e enjôo - anunciava que a ressaca era forte. De resto, ainda estava com o espírito repleto da felicidade que me atingira em plena madrugada. Eu já não estava mais, no entanto, perdido dentro do não-tempo da madrugada e tudo que era completo em mim se esvaziou ao perceber que não havia ninguém ao meu lado. E todo o mundo se virou em falta, em vazio, em dor. Eu já não lembrava o seu rosto ou o seu nome, mas era como se o seu gosto e o seu cheiro ainda estivessem em mim. "Ai, quem me dera ouvir o nunca-mais/ Dizer que a vida vai ser sempre assim/ E, finda a espera, ouvir na primavera/ Alguém chamar por mim". As noites seguintes foram de uma busca insana e desesperada. Meus dias se transformaram em um longo tormento, minha vida se transformou em espera. Por todas as noites eu a procurava, tentando encontrar em todos os rostos, os seus olhos, em todos os beijos, a sua boca. O não-tempo, porém, havia se esquecido de mim. Nunca mais a vi. Ai, quem me dera não ter sido um sonho. |