URSULA HAYASHI
Beto Muniz
 
 

Quando a conheci ela estava bem distante das tradições de seus avós... Cultivava algo das artes de gueixa, sim, apenas um meio que justificava o fim: sonhava um dia construir sua casa, nela instalaria janelas altas, com persianas verdes para combinar com as floreiras nos batentes de madeira - essa mania que todos temos de sonhar sonhos maiores que nossas possibilidades de realizá-los. Ursula apertava seus olhos, fixava o horizonte e dizia que todos os dias, pela manhã, abriria suas persianas verdes, altas, e borrifaria água nas flores que ficariam orvalhadas. Como nas fotos das revistas. Plantaria hortênsias, violetas, petúnias, amores-perfeitos. Sua janela alta seria verde e também enfeitada pelo colorido de flores diversas. Depois se calava com os olhos perdidos ainda no horizonte. Nunca esclareceu o motivo que a fez abandonar pai, mãe, irmãos e demais parentes no oeste do estado e vir-se embora para a capital. Se alguém lhe perguntava, seus olhos escapavam do horizonte, suas mãos se apertavam uma na outra e os lábios permaneciam unidos, mudos.

Na cidade grande alugou um quarto de pensão, sujeitou-se a servir pinga para desiludidos no boteco da esquina e depois arrumou emprego como vendedora de bilhetes de loterias, meio-período, enquanto esperava coisa melhor. O emprego acabou se tornando a única fonte de renda. A bem da verdade nem renda nem fonte, apenas ganha pão. Filha de mulata com nissei, Ursula Hayashi, menina-moça, era bonita demais para estacionar na venda de apostas. Bastou pouco, foi apenas o tempo de conhecer Sofia (e se deixar convencer), acompanhante de executivos, para abandonar os bilhetes, os sonhos alheios de fortunas e cair no mundo de Sofia.

No início, a cada telefonema que recebia Ursula se encolhia e voltava o pensamento para a janela alta de venezianas verdes e flores colorindo o batente. Por sorte foi também nesse início que eu me mudei para o mesmo flat onde ela morava e fazia companhia para executivos arredios. Eles chegavam, pagavam e se iam, desacompanhados. Já nos meus primeiros dias de casa nova, o administrador informou sobre a moça - profissão acompanhante, três andares acima. Uma noite liguei, paguei por sua companhia sem dizer que era vizinho, depois passei a freqüentar os braços de Ursula, cliente cativo. Às vezes eu subia, às vezes ela descia. Nos tornamos quase amigos, com o tempo ela não mais me cobrava pelo período integral de acompanhamento, mas cobrava! Dizia que de outro jeito ficaria esquisito. Se o telefone não tocasse ficávamos conversando, trocando companhias, até alguém ligar solicitando a profissional. Sobre seu sonho eu incentivei, palpitei e dei carona quando ela quis conhecer o terreno que já podia comprar. Fui testemunha, assinei no contrato de compra, e naquela noite a acompanhante profissional não atendeu aos chamados do telefone. Ficamos nos fazendo companhia, comemorando, até quase o amanhecer. Na saída não paguei, apesar de saber quanto devia, nem ela me cobrou, apesar de saber que eu pagaria. Ursula deu tchau e não soltou a porta do elevador, me encarava com olhos de horizonte, projetando em mim um nascer-do-sol. Tremi. Dias depois ficamos juntos novamente, paguei pela companhia que já devia e fiquei devendo o acompanhamento mais recente. Com o passar dos dias, os acompanhamentos se sucedendo, eu me acostumei a pagar pela companhia anterior e ficar devendo a última, até que nova transferência no trabalho me levou de mudança. Despedi-me de Ursula e prometi voltar para pagar pelo último período de acompanhamento. Os anos passaram e eu não voltei.

Coincidência ou acidente, São Paulo parece grande mas o burburinho acontece dentro de uma casca de ovo, encontrei Ursula no aeroporto. Não tinha mais o jeito moleque de quem se diverte contando os dias e empecilhos que faltam para realizar um sonho. Era a mesma, no entanto mais séria, rosto fechado, passos rápidos, quase me foge! Alcancei e falei seu nome bem perto do ouvido, soprado - Haaayasssshi! -, uma brincadeira dos tempos de vizinhos. Ela pareceu voltar do passado e se jogou num abraço moleque, voltando a ser aquela menina-moça que me fazia companhia fiado. Depois do café falamos da vida, dos anos idos. Deixara de fazer companhia para executivos arredios. Não quis responder sobre sua casa de janelas altas e persianas verdes com flores no batente. Mas insistiu que eu fosse conhecer seu novo endereço. Trocamos telefones e nos despedimos quando prometi uma visita.

Liguei, fui no sábado à tardezinha, quase noite, levei um vinho. Na sala do apartamento a janela alta, verde, persianas abertas mostrando a parede, fazia às vezes de um quadro. Os batentes repletos de floreiras. Não conseguiu construir sua casa, nem colocar a janela alta no apartamento, fizera então um arranjo na parede interna e se aquietara. Do sonho não realizado parecia não restar frustração ou amarguras. Brindamos, bebemos, rimos e falamos do passado. Lembrei do terreno. Vendido! De bobeira falei sobre o dinheiro que ainda lhe devia. Perguntou-me se eu pagaria e sem hesitar fiz um cheque. Ursula pegou a folha estendida, conferiu o valor e colocou na chama da vela. O fogo comeu metade da assinatura e foi extinto. Sem explicações, apenas aqueles olhos de horizonte escurecendo ao anoitecer, ela dobrou o papel parcialmente queimado e se calou. Também me calei enquanto na mente se atropelavam arrependimentos, sonhos irrealizáveis, amores improváveis, solidão e medo do futuro. Nos despedimos. No elevador ainda pensei em voltar, tocar novamente a campainha, tomá-la pela primeira vez, e para o resto de meus dias, como companheira! Não fosse a lembrança daquele pôr-do-sol nos olhos de horizonte... Quem me dera estar chegando e não saindo.

Pisando os mosaicos da calçada eu imaginava ressuscitar o sonho - existira grande possibilidade de realizá-lo, bastaria voltar poucos minutos no tempo e eu escreveria uma declaração de amor no cheque e entregaria para Ursula Hayashi. Em seguida lhe faria todos os gostos, pintaria as janelas de nossa casa de verde e prenderia vasos nos batentes.