AMOR SE ESCREVE COM "A", DE ÓDIO
Luís Valise
 
 

O delegado andava de um lado pro outro, cigarro na mão esquerda. Na direita, o fio com a ponta desencapada. Eu estava sentado numa cadeira, com as mãos algemadas nas costas. Nu. Dois investigadores também andavam pra lá e pra cá, e de vez em quando um me dava um tapão na cara. Isso não era nada, o problema era quando o delegado encostava a ponta do fio na minha orelha. Ou no meu ombro. Ou no meu pau. Aí eu tremia todo, o olho parecia ver o lado de dentro.

- Fala: por quê você esfaqueou tua mulher?

- Eu não dei facada em ninguém, doutor!

Bzzzzzzzzzz! Eu tinha mijado na cadeira, e o líquido por baixo fazia o choque aumentar. Desta vez eu quase pulei.

- Fala, porra! Bzzzzzzzzz!

- Não fui eu, doutor, juro! Todos os músculos do meu corpo doíam.

- Tá, ela pegou a faca e deu quatro facadas nas próprias costas!

- Eu não sei quem foi, doutor!

Um tapa desta vez pegou em cheio minha orelha esquerda, e um apito fino encheu minha cabeça. O investigador magrinho falou:

- Tapa não adianta, tem que dar porrada! O delegado orientou:

- Não pode deixar marca, senão os Direitos Humanos vão encher o saco.

- Só um, doutor, só um, e o magrinho me deu um soco bem na boca do estomago. Dói pra caralho.

Perdi o fôlego, e comecei a sentir dor de barriga. O delegado chegou perto, puxou meu lábio e encostou o fio na gengiva. Foi como se um raio caísse na minha cabeça, meu pescoço deu um pinote, tudo ficou preto por alguns segundos, e eu soltei os intestinos. Senti a pasta quente se formando debaixo da minha bunda. Um cheiro horrível encheu a sala. Só assim pros putos pararem a tortura. Saíram, mas me deixaram lá, no meio da merda. Quando acordei já estava na cela.

Os presos se amontoavam contra a parede:

- Vai se lavar! Já não basta o cheiro de podre, você ainda traz cheiro de merda? Vai, vai!

Levanto meio tonto, sentindo fraqueza nas pernas. A ponta de um cano sai da parede, abro a torneira, a água gelada na nuca também é um choque, só que diferente. Não tem sabonete, sabão, nada. Passo a mão na bunda, sinto a crosta de fezes endurecida se desmanchar na água que escorre pelas costas. Por alguns instantes o fedor aumenta, depois vai passando, a pele molhada solta fumacinha, começo a bater o queixo. Fecho a torneira, pego minha roupa jogada no chão, cueca, bermudas, camiseta e visto sobre o corpo molhado. Volto a deitar no chão imundo. A tremedeira não passa. Um preso me (se?) consola:

- Cadeia não é pra qualquer um, só pra homem.

Depois de uma semana me soltam. Não assinei inquérito, nada. Me prenderam, me bateram, me soltaram, parecem gostar da mão-de-obra. Sem um puto no bolso, vou pra casa a pé. Longe pra caralho. Os vizinhos me olham de canto. Antes de entrar, paro no portão, e declaro:

- Não fui eu, eu juro. Se eu pegar quem fez, eu mato.

Dentro de casa digo o mesmo à minha sogra, que não me olha, em silêncio. Pego minha filha caçula no colo, dou uns beijos. Pergunto pela minha mulher:

- Cadê a Nena? A velha responde sem me olhar:

- Tá no hospital. Não quer te ver.

- Não fui eu, já disse!

Vou tomar um banho quente, passo bastante espuma na bunda. Visto roupa limpa, cueca, bermudas, camiseta. No corredor que leva ao portão não tem mais marcas de sangue. Ali que a Nena foi esfaqueada, pelas costas. Volto a falar com a velha:

- A senhora tem algum pra me emprestar? Fui roubado na cadeia.

Sempre sem me olhar, a velha abre uma gaveta, remexe uns panos de prato e me estende duas notas de dez. Agradeço com um gesto de cabeça. Beijo a caçula e saio. A Nena não quer me ver.

Paro na birosca do Mano, peço uma pinga. Quebro o silêncio incômodo:

- Gente, não fui eu. Quando fiquei sabendo que a Nena tava de caso com aquele motorista da linha 12 até pensei fazer besteira. Mas depois concluí que não valia a pena. Quando ela levou as facadas eu nem estava em casa. Vai ver a vaca tinha outro amante. Quem tem um pode ter dois. O silêncio continuou, e de certa forma aquilo doía mais que os choques do puto do delegado. Achei melhor sair.

Na esquina encontrei meu filho mais velho, que se encolheu ao me ver.

- Vem cá, Juninho, não precisa ter medo, eu nunca encostei a mão em você, não vai ser agora que você nem fez nada. Diz pra mim, em qual hospital tua mãe tá?

- Eu não sei, pai.

- Diga, anda, diga logo!

- Eu não... No Santo Estevão. Não faz nada pra ela, pai, por favor.

- Eu não fiz nada, filho, eu juro, não fui eu.

Quando a Nena levou as facadas estava escuro, quem manda chegar tarde em casa? Eu já desconfiava que tinha outro. Desde o dia que ela disse:

- Tô cansada de te sustentar. Eu saio pra trabalhar, você fica aí, dormindo, depois passa o dia bebendo no bar. Isto não está certo. Já te dei muita chance, você não toma jeito. Cansei.

Eu gosto da Nena. Ninguém fica junto doze anos sem gostar. Não arrumo trabalho porque não tenho sorte. E quando arrumo o chefe sempre cisma comigo. Tem muito homem que passa o dia no bar. Vê se alguma mulher manda eles embora. Manda nada.

- Prometo pra você que vou arrumar trabalho. Me dê a última chance. A última. Ela deu.

Arrumei emprego de vigia. Fica do outro lado da cidade. Passava a noite inteira rondando os fundos de uma fábrica. Acho que quando a distância aumenta, o amor diminui. Um dia vi os dois no ônibus. Ele dirigindo, ela em pé ao lado. Tinha lugar pra sentar. Também deu de usar baton. Eu trabalhava de noite, começou a chegar tarde. A se arriscar.

No hospital a moça perguntou se eu era parente, eu confirmei:

- Irmão. A moça falou:

- Se o marido dela chegar, o senhor não deixe entrar. Ela acha que ele vai mata-la.

- Sim, senhora, eu tomo conta.

No quarto tinha outra cama, mas não tinha ninguém. Entrei, e fiquei de pé ao lado dela. Coitada da Nena, tinha um tubo entrando pela boca, outro mais fino pelo nariz, e no braço tava ligado um saquinho de sangue. Tinha levado quatro facadas nas costas e tinha sobrevivido. Mulher forte. De repente ela abriu os olhos, e ao me ver o terror apareceu em seu rosto. Tratei de acalma-la:

- Não fui eu, Nena. Fique calma. Ainda passei a mão em sua testa. Ela ficou mais calma, duas lágrimas saíram dos seus olhos. Ela serenou, e tornou a fechar os olhos.

Ela estava até bonita, bem pálida, quase branca. Eu gosto da Nena. Ela não tinha que arrumar outro. Fez esforço para engolir, pareceu dar um sorriso, eu acho. Enfiei a faca comprida no peito dela. Melhor uma bem dada, que quatro na correria. O tubo grosso não deixou ela gritar. Saí do hospital andando calmamente. Não tenho medo. Se a polícia me pegar, eu confesso logo. Choque, nunca mais.