O ESPELHO
Kátia Rodrigues
 
 

Um copo de uísque na mão, o barulho do gelo tilinta enquanto ando. Fecho a porta e, no espelho atrás, o corpo nu emoldurado não mostra quem realmente sou. Fim de noite de domingo, a cabeça fervilha e a segunda promete ser longa. Dedos afagam os cabelos, juntando-os no alto, olhos descem pelo espelho, até chegar ao chão e viro-me de lado para tentar enxergar quem pareço. Não me vejo no passado, nem projetada num futuro outro, que não eu mesma. Sou essa figura que me olha e mesmo assim não saberia dizer quando estarei pronta para dizer-me.

Os últimos tempos foram de mudanças, transformações. Com cuidado busco nas marcas do rosto algo que me conte sobre elas. Olhar atento, sem óculos, não vê realmente o que aconteceu nos últimos tempos. Será que os olhos nos mostram a verdade? Sobre a cama a roupa que visto rápido, o corpo ainda morno depois de um mergulho da alma, na espuma quente, no silêncio da casa, de portas fechadas e paredes vazias. Como num sonho tenho o espaço do meu eu, a possibilidade de ser quem quer eu queira, a almejada liberdade de ir vir, fazer e acontecer. Diria que a faca e o queijo estão ali, disponíveis. Mas e aí? A roupa vermelha escorrega pelo corpo. O copo novamente volta às mãos, que juntas entrelaçadas selam ali um brinde.


Os tempos são novos, a vida, sempre a velha vida velha, que apronta peças, aonde as coisas vão e vêm as pessoas acontecem e muitas não voltam, sem deixar saudades, enquanto outras, mesmo por perto não são mais nossas, e delas perdemos o cheiro. Será que em algum momento chegaremos perto da felicidade, ou somos felizes quando não tentamos localiza-la no tempo? A sensação de plenitude está em mim, apesar de qualquer senão ou talvez. Mas será que um dia conseguirei dizer quem realmente sou? Quais são os meus desejos, antes que se realizem ou transformem? Na boca o gosto do malte, o gelo se dilui e expande os sentidos aguçados, o olhar perdido no espelho, mas tão distante. A luz que se apaga, a porta que fecha e a certeza que a vida, esse tempo que nos é presenteado pelo universo, completamente metafórica e cheia de mistérios nunca nos permite saber quem realmente somos.