IMENSURÁVEL
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Francisco
Pascoal Pinto de Magalhães
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enquanto tira o pó da mobília giselia cantarola com um fio desafinado de voz: "tanto tempo longe de você, quero ao menos lhe falar". é pouco dizer que giselia gosta do rei: ela o venera, o idolatra, curte as suas canções, conhece-as quase todas de cor. é fã do rei desde mocinha, quando ainda morava com os pais lá no interior, em lucélia. nessa mesma sala de estar onde giselia agora cumpre expediente, dona glória, sua patroa, tem um aparelho de som importado novinho em folha e um rack de mogno cheinho de discos cd de cantores com nomes impronunciáveis que cantam quase sempre em línguas que giselia desconhece. "pena que não tenha nenhum do rei", se queixa giselia. e imagina como seria bom se dona glória botasse de vez em quando um disco do rei para ela ouvir enquanto faz a faxina. a hora ia passar bem rapidinho. "que a distância não vai impedir, meu amor de te encontrar" distância distância mesmo, a maior que giselia já percorreu, foi justamente aquela que se estende entre sua pequena lucélia e a capital. distância que cumpriu de ônibus, vinte anos antes, quando veio para trabalhar em casa de família. era tão menina... "cartas já não adiantam mais..." giselia gosta de escrever. principalmente cartas. não tem muito estudo mas costuma por no papel o que lhe vem ao sentimento. é uma forma de não se sentir só nesta cidade. dona glória também é sozinha mas aproveita a vida: ora vai para a europa, ora vai ao caribe, ora vai a outros lugares que nem de longe povoam o humilde imaginário de giselia. da última vez que voltou de... dona glória contou que conheceu o rei (muito simpático, por sinal). foi num navio de cruzeiro. um amigo comum os apresentou. giselia não sabe o que é um navio cruzeiro. nunca viu um. mar, então, só viu uma vez na vida. e o rei, ela só vê na TV, nos especiais de fim de ano. "quero ouvir a sua voz..." dona gloria deu para giselia uma foto autografada do rei que ela guarda com o maior carinho. giselia lembra que quase perde a voz aquele dia. são tantas emoções... "vou telefonar dizendo que estou quase morrendo de saudade de você" giselia morre de saudades de lucélia, dos pais velhinhos, das amigas, do noivo que cansou de esperar a sua volta e casou-se com outra.... a distância, como diz dona glória, para quem o mundo tem outra dimensão e proporções, por maior que seja, não é nada. imensurável mesmo, só a saudade. |