TERESINHA
Beto Muniz
 
 

Eu já escrevi várias vezes que sempre, desde menino, gostei de literatura. Também já falei que fui criado em vila pequena, quase aldeia, nos confins de Minas Gearias. Só não expliquei que gostar de ler onde só tem agricultor e boiadeiro é coisa que não passa desapercebida.

Esse tipo de excentricidade logo se tornou notória. Os comentários dos aldeões, diante do menino magricelo com a cara enfiada num Jorge Amado, eram um misto de encanto com profecia: "Vai ser doutor!". Azar da minha orelha e cocuruta! Os curumins não partilhavam da mesma opinião que seus pais e avós, me fizeram sentir na pele o quanto um elogio pode causar dor - a inveja infantil é mais dolorida que a de adulto. Com o tempo o couro engrossou, principalmente do pescoço para cima, e os sopapos que levava gratuitamente não tiravam sequer a concentração na leitura. Na pré-adolescência passei a revidar - me tornei cruel! Um catiripapo era retribuido com juros e correção. Eu começara a ler os clássicos, livros volumosos, perfeitos para fazer sangrar nariz de invejoso. Oito narizes quebrados pelo exemplar - capa dura, de "A Consciência de Zeno" foram suficientes para fazer a fama crescer e deixarem minhas orelhas em paz. Adentrei a adolescência versando sobre Stendhal com o Padre Dázio, meu fornecedor de títulos e autores consagrados.

Na aldeia não tinha ginasial, só o grupo escolar, por isso fazia muito tempo que eu não sabia o que era sala de aula, mas os livros me ensinaram tudo que sei e duvido que qualquer curso colegial da época faria melhor ao meu espírito que a biblioteca do Padre.

Quando já conhecia todos os títulos existentes na aldeia, meus pais, evangélicos, decidiram mudar. Fomos para a cidade, um município com pouco mais de dezoito mil habitantes, totalizando a área rural e urbana. Convenhamos, para quem morava numa aldeia com um armazém, um grupo escolar de duas salas, igreja, doze casas e uma farmácia, qualquer localidade com mais de uma rua era cidade grande! A primeira providência da minha mãe foi matricular todos os filhos na quinta série. Eu era um espigão com dezessete anos e ficava constrangido em dividir cadeiras com meninos de dez, onze anos. Pensei em abandonar a escola, mas os hormônios estavam em ebulição e fiquei pela proximidade com as garotas da oitava série.

Teresinha demorou quatro semanas para perceber que eu estava interessado nela. Os alunos de minha idade, colegas de classe dela, debocharam e quiseram ressuscitar as sessões de catiripapos em minhas orelhas, de pronto peguei uma bíblia do meu pai - o exemplar de Ítalo Svevo era do Padre, e saí distribuindo bibladas nos narizes até me deixarem em paz, curtindo a paixão platônica. Para as meninas eu distribuía poesias. Para os professores distribuía respostas lógicas, e assim me tornei novamente digno de comentários mistos de admiração e profecia: "Esse, se quiser, será doutor!".

Um dia a moça puxou assunto, queria comentar um livro qualquer, saquei minha erudição, e sem querer destilar mais conhecimento do que realmente possuía, acabei conquistando a simpatia de minha musa. Eu escrevia poemas sofridos onde o desencanto e abandono só não eram mais constantes que o nome de Teresinha - depois queimava os papéis com receio dos meus irmãos botarem as mãos sobre eles. Minha segurança diante das letras exerceu influência afrodisíaca em Teresinha, ela passou da admiração para a paixão em menos de duas páginas comentadas. Porém, éramos tolos nos assuntos de namoro, entre a teoria e a prática havia ainda muito chão a ser percorrido. Começamos um típico namoro de cidade grande onde todos se conhecem pelo nome de batismo, acompanhado pelo ponto de referencia familiar. Eu era Fulano, filho do Pastor. Ela era Sicrana, da Maria dos tricôs. A gente se encontrava na lanchonete do Lazinho, filho do João Sem Pé, e ficávamos conversando até dar a hora de voltar para casa. Na despedida um selinho, rápido, quase que escondido, e eu pensava que se fosse diferente ela podia ficar mal falada! Isso durou meses, e todos os dias nos encontrávamos - não tinha como ser diferente numa cidade tão grande que o principal meio de transporte era bicicleta. Findo o período de experiência, minha presença foi admitida na sala da casa de Teresinha. Dona Maria tricotando no sofá eu comentando Machado de Assis, mas com vontade mesmo era de botar as mãos dentro da blusa da namorada. Noite após noite a lã sendo trabalhada e eu olhando para os seios juvenis, os bicos educadamente rijos, pedindo licença aos tecidos, querendo espetar minhas mãos, e Teresinha discursando a candura de Irene chegando no céu.

O tempo todo nosso namoro alternava num misto de estudos, vontades ocultas, respeitos, negações de vontades, convenções sociais e expectativas de sacanagem. Eclesiastes capítulo três estava certo; existe um tempo para tudo. Existe um tempo para querer, outro tempo para ter...

Meus pais foram cultuar com os evangélicos lá na aldeia, eu fiquei sozinho em casa e estava iniciando o culto a Onan quando Teresinha chegou. Trouxe Camões, preparada talvez para um singelo sarau a dois. Teso de vontades pelo culto interrompido, tomei seus sonetos, joguei longe, desabotoei sua blusa esconjurando: "Camões é um ramalhete de caralhos". Ela se deixou desnudar, apalpar, lambuzar e retribuiu cada ação enquanto confessava que não agüentava mais literatura. Pelas convenções sociais de uma cidade com menos de dez mil habitantes na área urbana, eu faltei com todos os tipos de respeito para com a moça, para com a Maria dos tricôs e para com toda sua geração ascendente! Teresinha não reclamou meus atrevimentos, católica praticante, me perdoou os abusos. Aprendemos bastante um com o outro, coisas que eu não encontrei em nenhum dos livros do Padre Dázio. O namoro durou mais alguns meses e não abrimos nenhum outro livro. Apesar de estarmos em pleno período letivo!