DE JOSÉ MANOEL A ZÉ MANÉ
Valdecir Cremon
 
 

José Manoel Junqueira Coelho nasceu em família de classe média e estudou em escola paga. Na infância treinou judô e fez aulas de piano com uma generosa tia, professora de música numa escola do bairro onde passou a maio parte da infância. Filho de pai militar e mãe militante de forno e fogão, não demorou a destacar-se na escola por sua disciplina e dotes de bom menino.

Quando chegou ao colégio, já com fios de barba destacados pelo rosto, era pura expectativa de um bom profissional, já que não quisera seguir os passos do pai. Vovó dizia que era orgulho da família, mas cuidava que o pai não ouvisse.

Numa aula de desenho técnico, quando o professor - um homem alto e sisudo, cheio de razões para brigar com o mundo todos os dias - deu-lhe uma tarefa sobre perspectiva isométrica, surgiram seus primeiros problemas. Usar transferidor lhe causava náuseas. Não gostava daquilo. Achava esquisito.

A fala do professor Naor lembrava a voz de seu pai no comando das tropas do Tiro de Guerra - para onde José Manoel nunca pensou em se alistar. A voz, os pés batendo no chão e o maldito transferidor tinham significados difusos. No ouvido de José Manoel, aquela tarefa parecia uma ordem de invasão ao território inimigo, onde certamente seu pai gastou pares de coturnos a simular com suas tropas. E tinha até eco de caverna da Segunda Guerra mundial, nas montanhas da Polônia.

Na mão do professor, o transferidor lembrava mais um capacete de boca para baixo do que uma marmita de boca pra cima. A classe era uma trincheira, onde Naor atirava palavras de um lado para outro e José Manoel não tinha chance de botar nem o nariz para fora.

Hesitante, José Manoel estreante na escola sufocante não encontrou saída. O jeito foi fingir que sabia o que o professor queria e iniciar o riscado. Traço pra lá e traço pra cá, com compasso e esquadro, mas com medo aterrador não pegou transferidor. Nota zero.

O filhinho que elogiava os bolos da mamãe e desfrutava do colinho da vovó, via o que a vida reserva a quem quer ir além do que o pai foi. Tudo para ele, agora, era martírio.

O plafunil da luminária, a cova da pia do banheiro, o contorno da sola do tênis de jogar vôlei; a saia das meninas do colégio e aquela fatia de pudim de geladeira lembravam o maldito transferidor do professor Naor. Só de pensar que o pensamento é redondo, que circula na cabeça e dificilmente encontra a saída da boca, lhe dava náuseas.

Foi aprovado no colégio com a nota 6,2 que, somados dão 8, vezes quatro 32, menos 10 é igual 22 e dois números iguais lembram circunferência - duas vezes dois transferidores de costas um pro outro.

A soma da placa do carro de seu pai com o número do prédio do colégio, divididos pela data de aniversário da menina que nunca lhe dirigiu uma palavra a não ser um sonoro "dá licença" chega a 2222 - outra vez o número dois. Agora são quatro transferidores. Duas meias luas de um lado e mais duas de outro. Dois também lembram as sílabas do nome de Naor. Que horror!

Na faculdade, José Manoel não passou da primeira DP. Caiu fora. Abandonou o curso e procurou emprego numa barbearia. O dono é um velho amigo de seu pai, hoje morto. Quem o procura pra fazer barba ou cortar o cabelo apenas grita da porta:

- O Zé Mané ta ai?