ESPELHOS
Teresa Maria de Magalhães Araújo
 
 

Sim, são para se ter medo, os espelhos.
- Guimarães Rosa -

Adelina chegou carregando seus 130 quilos e um desconforto pesado ao invadir a nova casa. Trouxe poucos pertences em uma maleta. A voz delicada parecia não pertencer ao corpo disforme. Alta e negra, impressionava pela construção de frases inteligentes pronunciadas com sotaque carioca e boa dicção. Unhas longas e bem feitas, um pouco curvas nas pontas, como as das aves de rapina. Condenada à solidão, perpetuava a marca de Caim. A patroa, ainda jovenzinha, havia se divorciado e tinha um filho pequeno. Desprotegida, miúda, magra, a cabeleira descia pelas costas, cascata escura que se harmonizaria com um talhe longilíneo. Mas ela fazia questão dos cabelos longos. Vulnerável, sofria a recente separação. Eram a mão e a luva. Falsa fragilidade de uma, enganosa força da outra. Sem delongas, a serviçal foi ocupando espaços. Revelou seus dotes culinários, a paciência com crianças. Criativa. Seduziu mãe e filho, conquistou os amigos da casa. Não tendo vida própria, emprestava a alheia. Enredava um a um. Com perspicácia, investigava a miséria dos que a rodeavam. Como nunca saía nem visitava os familiares, sobrava-lhe tempo para vivenciar o outro; não o exercício da alteridade, porém o de quem vive às expensas do próximo. Sugava e sorvia. Servia. Sob a capa da servidão, magnetizava os desavisados. Cordélia, a patroa, padecia de inapetência. Adelina capturava sabores raros a fim de agradar, oferecendo-lhe o regalo de ser mimada. Sorria, mas, ad intra, toda ela era conflito. Superando a si mesma, sentava-se no chão com o menino e brincava com ele, com dissimulada dedicação materna. A dona achava que a presença solidária da negra apaziguaria sua solidão. A idéia de que teria a fidelidade dela, para todo o sempre, era como o remanso do colo materno. Depois de seis meses, Adelina apresentou o primeiro sintoma de desequilíbrio. Via um filme cuja temática era apavorante: as conseqüências devastadoras de um ataque nuclear. Insegura. Impregnada pelos horrores do longa-metragem, sentiu falta de ar. Foi se deixando dominar pela identidade com os personagens. Nariz entupido, sôfrega, respirava com boca aberta, lábios arroxeados. Taquicárdica. Enrijeceu os músculos, travou a mandíbula. Hirsuta, estirada no chão, desesperou a dona da casa, que nunca presenciara cena semelhante. Crise histérica foi o diagnóstico médico. Após o momento crítico, comportou-se como se nada houvera acontecido. Em outras ocasiões, apresentava sintomas diferentes. Ora eram dores de cabeça lancinantes. Ora febre emocional. No meio da noite, Cordélia levava-a ao atendimento médico de emergência.

Certa vez, ficou internada no hospital durante quinze dias. Na sua ausência, Cordélia descobriu que era notívaga. Passava as madrugadas ao telefone, com um jovem que se apaixonou por sua voz suave e pela história enganosa que arquitetou. Questionada sobre a informação, negou peremptoriamente. A dona da casa, benfazeja, deixou passar. Adelina - tão farta em qualidades - vivia presa ao aspecto caricato. Sua alma aflita ansiava por um escape. O tempo foi somando seus dias. Cordélia percebia os antagonismos da outra. Mesmo assim, deixava-se ficar sob os cuidados dela, para não se perder no abismo. No quinto ano, Adelina noticiou que nasceria o filho bastardo de um irmão com uma cigana. Prepararam o enxovalzinho. Ela viajou para a cidade de origem a fim de entregá-lo. Voltou com o bebê - uma linda menina chamada Bernadete. Tomada de surpresa, Cordélia a princípio rejeitou a idéia. Não, não, não, essa criança não pode ficar aqui! Mas o choro do bebê buliu em seus instintos maternos. Revisitava a ternura de ser mãe. Ao termo do sexto ano, Adelina viajou, foi visitar a mãe doente. Na sua ausência, caíram-lhe todos os véus. Um dia, bateu à porta uma jovem. Miúda, magra, a cabeleira descia pelas costas, cascata escura que se harmonizaria com um talhe longilíneo. Vulnerável, sofria a recente decepção. Cordélia se arrepiou. Parecia-lhe um diabólico jogo de espelhos.

-Bom dia, meu nome é Beatriz, preciso falar com você. Posso entrar? Tinha voz grave, um pisar firme. Cativou confiança imediata. Espantada, mirou-se na similitude: - Sósias?

Esquadrinharam-se. Pasmo a pasmo!

- Oi, bom dia, sorriu permitindo a entrada da jovem. Ela trazia uma grande mala. Colocou-a sobre a mesa. Como se desfiasse um rosário de absurdos, expôs as peças, uma a uma. Eram fotografias, textos avulsos, livros, cartas. Uma profusão de papéis sem valor material, embora fossem coisinhas surrupiadas da patroa. Depois do assombro, profunda tristeza. Experimentaram a aspereza do engano. A revelação definiu a despedida de Adelina, e, ó dor, afastaria a pequena Bernadete. Cordélia reconhecia que seria loucura desculpar tamanha desfaçatez. A criada fora longe demais. Beatriz veio para contar. Fora seduzida por Adelina que a envolveu por meio de telefonemas noturnos, escritos, pequenos presentes enviados pelo correio. Uma narrativa bem urdida, rica em minúcias, desenhada na fleuma de três anos, por uma Xerazade às avessas. Três anos! Mais de mil e uma madrugadas tecidas com palavras. A moça, não suportando mais o enigma, mandou grampear o telefone de onde vinham as ligações. Sentia-se tola por ser capturada no labirinto de mentiras. A caminho da porta, olharam-se no espelho bisotê da cristaleira antiga. Entreviram-se em duplicata, na semelhança assombrosa que as uniria para sempre. À frente do vidro, uma foto de Adelina com o menino no colo. No rosto, um sorriso dissoluto, como se zombasse das duas. Nada mais restava a elas, exceto delegar à empregada o que merecia: o abandono. E assim fizeram.