DE MÁSCARAS E SOMBRAS
Tatiana Alves
 

O sol brilhava alto quando ela chegou à velha casa onde havia sido criada. Passeou pelos jardins, algo que não fazia na cidade onde agora morava. De fato, sentia-se mais forte essa manhã, a despeito da anemia diagnosticada pelo médico. A ida à antiga casa da família, sempre adiada, surgiu de modo quase compulsório, já que os ares do campo seriam benéficos à sua recuperação. Suas pupilas contraíam-se em virtude da claridade inesperada para aquela época do ano, como se o brilho da manhã pudesse incomodar. Arrancou uma rosa do pé, e sorveu prazerosamente seu perfume, enquanto pensava se ele viria ou não visitá-la. Pousou a mala no banco da varanda, afastou os jornais e olhou em volta, reconhecendo o lugar, ao mesmo tempo tão familiar e diferente, agora que o via com a perspectiva da mulher.

Lera novamente as cartas enviadas por ele, como se o simples contato com elas tivesse o poder de trazê-lo para perto de si. Alisou o papel, sentindo-lhe a textura, como se indiretamente o pudesse também acariciar. Aproximou a carta do nariz, talvez na esperança de sentir o perfume, como nas novelas de época, como se a vida moderna não tivesse aniquilado tal possibilidade, fazendo com que o perfume, se um dia se tivesse derramado naquele pedaço de papel, já não se tivesse evaporado e extinguido nas sucessivas viagens da missiva até lhe chegar às mãos. Voltou à carta, observando a letra irregular do remetente. Letra irregular, comportamento instável, pensou, enquanto lia o amontoado de baboseiras que ele insistia em escrever. Será que ele viria vê-la? Se na cidade as visitas tornavam-se cada vez mais raras, num afastamento gradativo, numa espécie de morte lenta, o que poderia esperar daquela estada, sem ao menos o alento da promessa, ainda que dificilmente cumprida?

Subitamente, arrepiou-se. Aquilo urrava novamente no porão. Ainda que não tivesse passado de um grito abafado, como uma foto que esmaece com o passar do tempo, conservava o mesmo poder de sempre, de aterrorizá-la como se não houvesse saída. O desespero apossou-se novamente dela. Encolheu-se como a garotinha que anos antes jurara nunca mais pôr os pés naquela casa. Mas, nem que fosse para vendê-la posteriormente, ao menos uma visita fazia-se necessária. Como um avaliador que olha friamente, vislumbrando os vinténs de sua comissão por detrás dos jardins que habitam a tela, inspecionou os quadros, que talvez valessem mais do que a propriedade em si, imaginando o que faria quando se livrasse deles. Mas o preço a pagar era alto, ela sabia-o bem, pois os anos de insônia não lhe seriam ressarcidos jamais. Tapando os ouvidos, como se com isso pudesse abafar não apenas os gritos, mas as lembranças, caminhou em direção à casa.

Desceu vagarosamente as escadas em direção ao porão. Sua decisão era aterrorizante, porém irrevogável. Finalmente era chegado o momento de libertá-la. Tirou cuidadosamente a chave de dentro do decote, e só então soube que ela sempre estivera ali. Aproximando-se da jaula com um olhar enigmático, reminiscente, sorriu levemente e destrancou-a. A Fera olhou-a, atônita, com uma expressão que sugeria não apenas surpresa, mas a desconfiança típica de quem ficou presa por tanto tempo que a sonhada liberdade chega a amedrontar. A moça estendeu-lhe a mão, que o animal lambeu levemente antes de recomeçar a urrar. Mas, dessa vez, o grito não a apavorou. Balançando a cabeça em sinal de aprovação, confirmou-lhe que era chegada a hora de agir. Lentamente, a Fera subiu as escadas que a conduziriam à porta da casa. Lá havia alguém a quem precisava encontrar, pois eram muitas as contas a ajustar.