BARALHO CIGANO
Luís Valise
 
 

Aquilo não era típico dele, ficar em casa numa sexta-feira. Queria que ela soubesse que o fazia sofrer, que era a causadora do seu emagrecimento, de suas olheiras, seu desencanto. Por isso estava em casa, ao lado do telefone. Sexta-feira, logo ela chamaria, curiosa para saber como ele andava, e então ele diria com voz carregada de mágoa que estava Bem, de saída para encontrar uns amigos, você sabe, o Léo e o Ricardo, ganharam convite para o baile do Iate e me chamaram, mas só vou se você não se incomodar. Ele a conhecia de dentro pra fora, sabia que sua reação seria ciúme, bater o telefone na sua cara, em seguida aparecer de surpresa Não vai com ninguém pra lugar nenhum, que teu lugar é comigo, aqui, agora e pra sempre! Depois perguntaria, cheia de dengo, Por quê essas olheiras tão fundas, cobrindo seus olhos de beijos, Por quê essa mágoa na voz, mordendo seus lábios com ânsia, Por quê esse corpo magrinho, mostrando seus peitos, abrindo suas pernas, oferecendo seu sexo úmido e salgado pra ele, tão tristinho, tão fraquinho, mas com tanta fome, que passariam o resto da noite beijando, mostrando e comendo tudo o que o amor permite. Porque o que havia entre eles era amor, pensava ele, olhando o telefone, cheio de esperança. Horas passaram, telefone mudo, ele acordou na manhã de sábado deitado no sofá. Suas olheiras tinham aumentado, estava mais magro, a mágoa tomava conta do seu coração. De Mariana, que é bom, nem sinal.

Queria mostrar a ela como vive um homem que sofre, por isso não se penteou, nem tomou banho, nem escovou os dentes. Ficou com a roupa do dia anterior, espantalho urbano. À noite sentou-se ao lado do telefone, e esperou. Sábado, ela telefonaria, ele contaria a história do Léo e do Ricardo, o baile no Iate, ela viria, e coisa e tal.

Domingo de manhã: a mágoa explodia, a boca começava a criar musgo. Escovou os dentes. Saiu para comprar jornal, sentiu que as pessoas desviavam do seu caminho. Tomou banho, trocou de roupa. Ela gostava dele cheirosinho. Fim da tarde, ao lado do telefone, fazia palavras cruzadas, um anúncio de agência de detetives chamou sua atenção. Será? Piranha? Ao lado desse anúncio havia outro: Zora traz seu amor de volta. Fale com Zora. Ridículo. Não era homem de macumbas. Despertou no meio da noite. Dores no pescoço. O sofá era incômodo.

Na segunda-feira ficou preocupado: as olheiras haviam aumentado. Antes de sair, reparou, no jornal aberto, o anúncio da tal de Zora: traz seu amor de volta. Só por via das dúvidas, só em último caso, anotou o número. No escritório, passou o dia dando explicações: é a Mariana. A culpada é a Mariana. Foi a Mariana. Até que do outro lado uma voz feminina atendeu Pois não? Dona Zora, por favor. Aqui Madame Zora. Eu queria marcar uma consulta. Vamos ver... quarta-feira, sete da noite. Está bem, Dona Zora, sete da noite. Madame Zora.

Periferia. Outro país, gente parda, bermudas, chinelos de dedo, feio. Casa pobre. Portão fechado com argola de arame. Jardinzinho furreca. Bate palmas. Mulher de meia-idade, roupas coloridas, saia rodada, lenço na cabeça. Dona Zora? Madame Zora. Entre. Liguei na segunda, tenho consulta marcada para as sete. Eu sei. Cheiro de incenso. Meia-luz. Sofá desbotado. Cortinas fechadas. Mesa redonda, duas cadeiras. Curiosidade: A senhora bota cartas, joga búzios? Quiromancia. Lê mão, é? É. Sotaque europeu. De onde a senhora é? Hungria. Cigana? Senta aí. Dá a mão esquerda. Examina. Vai lavar, primeiro.

Agora tem também cheiro de cigarro. Janelas fechadas. Palma da mão virada pra cima. Unha pintada de vermelho corre pelas linhas. Cócegas. Vontade de rir. Como é o nome dela? Mariana. Hummmm. Você sofrendo muito. Você bom coração. Você não merece. Ela não presta. Como assim? Tem outro. Você tem chifre. Piranha! Vontade de chorar. Homem não chora. Chora. Que nem criança. Zora fica com pena. Vem cá. Senta no sofá. Lágrimas escorrem. Zora dá um abraço. Lágrimas molham colo de Zora. Rego dos seios bonito. Meia-idade, ainda vistosa. Deixe enxugar. Lenço passa no colo, seios sobem e descem com mais força, outra lágrima, Beija a lágrima, beija, Zora abre o corpete, seios grandes e firmes. Mariana tem outro, dá pra outro, a raiva, Zora tem muitas saias, saiotes, coxas brancas, quando abaixa a calcinha vê pelos pretos, muitos pelos pretos, parece um angorá enrodilhado no colo, os dedos de Zora apressados em sua calça, vem, come Zora, come Zora, ah!, Mariana, sua puta, toma, toma, toma!

Quinta de manhã sem olheiras. Mariana, por quê você fez isso? Não sente ódio, não sente mágoa. Como se tivesse sido tirado com a mão. A mão. Olha para a mão esquerda. Marcou outra visita com Dona Zora no sábado. Ela garantiu que Mariana volta.

Sábado telefona pro Léo. Baile? No Iate? Claro, te vejo às dez. Dona Zora foi pras picas.

Segunda, ao lado do telefone. Mudo, mudo. Pega um jornal, escolhe um anúncio, marca hora. Chega, subúrbio, cachorro magro late com esforço. Bate palmas. A porta é aberta por um negro alto, forte, colares de contas coloridas cobrindo o peito. Zora pergunta Senhor Pedro? Pai. Pai Pedro de Obá. Entre. Meia-luz. Cheiro de charuto. Como é o nome dele, M'zifia?