DESPEDIDA
Kátia Rodrigues
 
 

Súbito apagou o cigarro e levantou-se apressado. Ímpeto. Tinha que fazer alguma coisa, ainda que não soubesse bem o que. Precisava ir embora, era certo. Entrou no banheiro e no escuro abriu o chuveiro. Frio. Deveriam ser sete, talvez oito horas da noite. Deixou que água afogasse o rosto, nariz pra cima, olhos fechados. Assistia-se no absurdo dos últimos dias. Inexplicável. No chão a água era o volume de seu pranto. Permaneceu imóvel, molhando o rosto, o peito, mãos pousadas sobre o azulejo branco. Àquela hora a cor era apenas um clarão na sombra noite do banheiro. Tal como a casa. Ficara ali sozinho nos dois últimos dias: sem luz, sem som, isolado do mundo tanto quanto era possível excluir-se. Encolheu-se ao sair do box, abraçando-se com misericórdia e sentiu o frio do piso sob os pés. A toalha no canto deixada desde o último banho, quando fora mesmo a última vez? Não tinha importância. Mas lembrou-se que ela estava com ele. Cobriu a cabeça, os ombros, braços cruzados no peito, sentindo o cheiro que ela deixara. Restara.

Cruzou a porta e foi direto ao quarto sem ter coragem de olhar pra a sala, morta. No escuro apanhou suas roupas e começou a vestir-se. Pressa. O coração ardia e o frio na barriga irradiava por todo corpo. A vida não seria mais sua, depois dessa partida, instante maldito; precisava inventar-se, transformar-se em outra pessoa com suas próprias sobras. Abotoou a camisa, ajeitou os cabelos com os dedos. Boca seca. Procurou a meia, os sapatos. Agachou-se e o rosto ficou próximo ao relógio na mesinha de cabeceira. Passava pouco das dez; ou seriam quase duas horas da manhã de qualquer dia? Precisava sair dali ainda que não soubesse pra onde, nem como. Sentia que logo o telefone voltaria a tocar e o silêncio faria com que alguém viesse. Saiu fechando a porta, respeitosamente. Checou se os documentos estavam no bolso de trás, lembrou-se que precisaria de dinheiro vivo para não ser localizado facilmente. Teve consciência do peso da solidão eterna que o acompanharia.

Então entrou na sala e olhou-a. Nua no sofá, a pele alva reluzia no breu da casa, as pernas pendentes, o sexo descoberto, o ventre inerte. Correu os olhos sem pressa, por esse corpo tão conhecido com medo de tocá-la. Aproximou-se, descobriu-lhe o rosto afastando os cabelos, diante da penumbra de sua agora noite vida. Diante do seu olhar não havia futuro e restara-lhe um mundo onde ela não mais estava. Sem seu sorriso, viver não fazia o menor sentido. No corpo o arrepio da dor que lhe cortava, bem maior que o medo. Não, não era fraco. Nem inseguro. Sempre lhe dissera que seriam eternos; encontra-la o salvara, e não poderiam perder-se. Mas isto não a convenceu de ficarem juntos. E veio a quarta feira e toda aquela conversa sobre 'um tempo', dúvidas, 'conhecera alguém'. Perdeu a cabeça. Simplesmente. O corpo estava frio, rígido. Com cuidado retirou-lhe o cinto do pescoço, levantando-lhe docemente a cabeça que tombava no encosto do sofá. Enquanto olhava-a, encaixou o cinto no cós da calça tendo o cuidado de não deixar nenhuma presilha de fora. Dali pra frente não poderia cometer erros. Afivelou-se e a caminho da rua, decidiu descer pela escada dos fundos, os lances que o levariam pra fora de si mesmo. Bateu a porta sem olhar para trás, desceu devagar cada degrau com a certeza que quando cruzasse a última porta entraria definitivamente no inferno.