PULANDO AMARELINHA
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Ivone Carvalho
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Da janela do meu quarto, observando as crianças que, alegremente, brincavam na rua, detive-me no grupo que brincava de amarelinha. Instintivamente voltei a um longínquo passado, muito anterior ao tempo em que ensinei as minhas meninas a pularem cada casa daqueles retângulos ligeiramente sinuosos desenhados no chão, até chegarem ao CÉU. E, para desenhar, qualquer coisa servia: o giz, um pedaço de carvão, um pedacinho de pau, uma pedra, um caco de tijolo, um galho seco de qualquer planta. Olhando as crianças, lembrei-me, primeiramente, das minhas pequenas meninas e as vi dentre aquelas que estavam diante dos meus olhos. Loirinhas, ativas, inteligentes, meigas e lindas! Continuam assim, mas, longe de serem as pequenas que contribuíam para a alegria e a vida que davam à rua, são, agora, mulheres, profissionais, donas de casa, repletas de atribuições e obrigações, completamente distintas daquelas do tempo da amarelinha. Após o sorriso que se somava a uma lágrima da saudade que, imperiosamente, tomou conta de mim naquele momento, minha mente atendeu ao comando do meu coração e viajou um pouco mais no tempo, voltando à minha infância. E lá estava outra loirinha, com os cabelos presos num rabo de cavalo, alegre mas tímida - talvez em decorrência das reduzidas vezes que podia se juntar a outras crianças para brincar. Seu mundo era limitado ao pequeno quintal que dividia com os dois irmãos que o ocupavam quase que por inteiro, transformando-o num campo de futebol ou no espaço necessário para empinarem suas capuchetas. Talvez por isso a sua insegurança quando brincava com outras crianças. Temia errar, temia ser vítima de gozações, de passar vexames, de ser o motivo da perda da sua equipe nas pequenas competições ou de ser a perdedora quando a competição era individual. Talvez também por isso nunca jogou queimada no colégio, nem participou de qualquer competição esportiva. Tinha medo de fazer feio, de sentir vergonha ante um resultado insatisfatório. Ainda nos primeiros anos de escola aceitou o convite, com relutância, para fazer parte do corpo de canto orfeônico do colégio e teve a infelicidade de ser flagrada desafinando durante um ensaio, numa época em que a gripe tirava-lhe a voz. Foi dispensada do grupo diante de todos, aos brados da professora que lhe apontava a porta informando seu fim de carreira. E, ao chegar na sala-de-aula, ainda teve que contar em voz alta o motivo de sua destituição do grupo: desafinei! Talvez por tudo isso, ao longo de toda sua vida, nunca se sentiu segura para realizar trabalhos em equipe, optando, sempre que possível, por agir e concorrer individualmente, em quase tudo que faz. É incrível observar da janela, no tempo, aquela menina pulando amarelinha. Que medo de pisar sobre a linha e ser vaiada! Daí tanta concentração e tanto cuidado em tudo que sempre fez no decorrer de toda sua vida. Daí todos os cuidados para jamais errar, porque qualquer julgamento injusto sempre trouxe de volta a criança insegura, a loirinha que sentia o peito doer infinitamente quando se via vítima de olhares, troças e risos de outras crianças que não podiam avaliar o quanto ela se dedicara para ser perfeita e, por qualquer fatalidade, se via perdedora. De uma coisa ela sempre teve certeza: muitas perdas ocorreriam durante toda sua vida, mas, conscientemente, ela jamais concorreria para que isso acontecesse. A menina cresceu, ficou adulta, envelheceu. E os meus pensamentos, naquela janela, acompanharam a sua evolução. Uma vida inteira pulando amarelinha, sonhando alcançar o CÉU, vencendo cada um dos retângulos desenhados no solo, com todo cuidado para não pisar nas linhas demarcadas, ainda que sentisse a perna cansada ou doendo quando necessitasse ficar por mais tempo no retângulo isolado, pois sempre soube que a simples mudança de perna em hora errada, faz perder o jogo. Há momentos em que o tempo parece ser maior em algumas casas. Ela quer ir adiante, quer prosseguir pulando mas tem a impressão de que alguém a puxa, a segura, coloca obstáculos no seu trajeto, atira pedras nas casas, não quer que ela vá. Mesmo assim, ergue a cabeça e olha para o final do desenho, onde vê um imenso círculo circundando as grandes e mágicas letras: C É U - o objetivo, o ideal, o propósito, o sonho. E isso renova suas energias, lhe dá forças descomunais e ela segue pulando. Há muita gente torcendo e até lutando para que o círculo de chegada não seja atingido, mas ela sabe que sempre teve os cuidados necessários para não pisar nas linhas, para não torcer o pé, para não pisar em falso, para não se sentir extremamente cansada e, por isso, tem confiança de que atingirá o CÉU. Após um profundo suspiro, enxuguei as lágrimas da saudade. E saí da janela, pois a próxima etapa é de um quadrilátero que não tem par e será necessário um longo tempo sobre ele, equilibrada numa perna só. |