COMPLEXO
Francisco Pascoal Pinto de Magalhães
 
 

ela é definitivamente linda e não vai encontrar dificuldade em me convencer de que o problema está mesmo é dentro da minha cabeça e que, embasada no conhecimento e na experiência que adquiriu ao longo dos anos de estudo e prática dedicada no campo da psicanálise, constatou que o que mais me aflige não são os espectros cruéis da violência urbana, os índices altíssimos de desemprego nas grandes cidades, as altas do custo de vida, os efeitos agressivos e degradantes da poluição, as incertezas do futuro que a deus pertence, nem o trasbordamento sazonal e corriqueiro do córrego pirajussara que todo ano transforma a minha vizinhança numa piccola venecia: mas no fato de eu me preocupar demasiado com o que os outros podem pensar da minha pessoa. Opinião - de terceiros - é a palavra que define tudo, que está na raiz, na cerne do meu complexo.

e se eles acharem que...

eis a questão: e se. tudo isso explica este teu comportamento exibicionista, esta tua mania de exposição, ela enfatiza.

de fato reconheço que costumo cumprimentar com beijinhos todas as garotas da seção com uma discreta intenção de abate; e com forte aperto de mão os rapazes para mostrar que estou aí, na parada, predador implacável demarcando território.

auto-afirmação, ela volta a enfatizar em tom suave, encantadora.

que porra é isso?

insegurança, baby. medo de assumir algo inerente à sua personalidade.

assumir o que, meu? me ofendo.

ela disfarça o riso, com um charme irresistível, e eu relaxo. e digo que assumir assumir mesmo, só assumo a minha metrosexualidade. pois é. sou metrosexual. malho diariamente - pilates, manja? freqüento o esteticista, visto roupa de grife da moda, vou aos points do momento, etc. etc.

não me esconda nada, ela pede com uma cruzada as pernas de tirar o fôlego e eu desmonto. e conto sem muitos detalhes o que me ocorreu ontem, quando fiquei preso por quase duas horas no trânsito numa rua adjacente à paulista por conta do um milhão de ativos - e passivos - participantes da passeata GLS. e de como uma indiscreta repórter de TV me abordou e se apossou indevidamente da minha imagem num momento e local onde eu não deveria estar.

e isso me faz num gesto brusco consultar automaticamente o relógio, preocupado. é quase a hora do noticiário ir ao ar e como publicitário eu sei mais que ninguém que uma imagem vale mais que mil palavras.

só um apagão me salva, clamo aos céus.

A minha psicanalista sorri com lábios de pêssego vermelhos e diz em tom fingidamente confessional que também estava lá, na paulista, com uma amiga. e que no ano que vem pretendem ir novamente. e que talvez - pisca o olho azul - a gente se esbarre por lá.