COMMA
Eduardo Sales
 
 

A insegurança tem sido tão grande nos últimos tempos que até os já tão castigados moradores de rua passam por situações surreais.

É possível imaginar maior sofrimento que o de viver ao relento, sem a família por perto? Não. Mas ele existe. No bairro de Campos Elíseos, zona central da cidade de São Paulo, um morador de rua espancava outro com tal fúria que se percebia, rapidamente, que sua ira não era contra seu semelhante, pois além de derrubar o ancião, sua voracidade não permitia a interrupção de socos e cabeçadas.

O que a vida contemporânea pode nos proporcionar? De repente, a falta de segurança nos transmite incertezas quanto a vida. O que teria acontecido com aquele frágil senhor após ter sido espancado? A impressão foi a de que seu ponto final havia
chegado.

E a vida também borbulhava para o "Francisco", outro morador de rua. "Francisco"? É, "Francisco". Pelo menos foi esse o nome que a enfermeira disse. Ele foi personagem de uma notícia veiculada por inúmeros meios de comunicação há alguns meses. A imagem da televisão focava o triste e fadigado homem que acordava após um longo estado de coma. E o doente, deitado sobre uma cama de hospital, parecia esperar por alguém.

O que teria vivido até aquele desconfortável momento? Parecia não ter ninguém porque ninguém o visitava até a derradeira veiculação de sua imagem na televisão e nos jornais, o que gerou a ida de algumas pessoas com parentes desaparecidos até o hospital para constatar que o moribundo era realmente um solitário.

Aparentando seus quarenta anos, não falava nada, somente sorria. Mas a enfermeira tinha a certeza de que ele era "Francisco".

Quarenta anos na rua? Será? Seria? Nasceu no hospital ou debaixo da ponte? Apostaria um médico que ele se perdera do caminho de casa, fora seqüestrado e levara uma pancada na memória. "Foi isso", ironizava o doutor. Mas a enfermeira tinha certeza que ele era carpinteiro, ou, no máximo, pedreiro. "Mãos calejadas como essas parecem até com as do meu falecido", sugeria a senhora.

Rico nunca foi. O rapaz, coitado, estava acabado. Feridas de várias tonalidades em seu couro cabeludo podiam ser vistas. Seus poucos dentes convidavam qualquer visitante a contá-los sempre que sorria. Sim, ele não falava, mas sorria. E o ato proporcionava inúmeros questionamentos em relação à vida daquele homem de meia-idade.

Era óbvio que ele tinha apanhado muito para estar naquela condição, mas acordou do estado de coma. Em inglês a palavra "comma" significa vírgula. Talvez essa vírgula na vida de "Francisco" sirva para pôr um "mas as coisas mudaram".

Veja só! A insegurança atingiu até um miserável morador de rua! A Constituição assegura os mesmos direitos à todos, e que não seja a violência do outro que possa pôr um ponto final em suas vidas,