SEVERO
Beto Muniz
 
 

É notório que amo, sou apaixonado pela atriz Marieta Severo. Ora, é perfeitamente normal e possível que eu me apaixone por uma das tantas beldades presentes na mídia, diariamente essas misturas de mulher e estrela desfilam nas telas e revistas uma exuberância difícil de resistir, porém, diante da maturidade serena de Severo eu me desmancho platônico para deboche de amigos, tolos, argumentando que, se vou despachar sentimento rumo á uma estrela, a destinatária mais apropriada seria uma beldade capa de revistas ou calendários. Mas eu me encanto com Severo e mesmo que esse amor não se realize, ele é possível porque as barreiras são frágeis em minha imaginação! Só preciso manter a fé de que a qualquer momento terei uma oportunidade de lhe falar sobre o sentimento que habita no meu coração.

A oportunidade de declarar meu amor não precisa ter hora marcada. Talvez eu envelheça nesse amor e vá conservando, inalterada na memória, a imagem da mulher que ela é agora. Ao final alguns anos - a maioria dos quais carregando essa paixão platônica, poderei encontrar por acidente uma senhora que, apesar de desidratada pela secura dos anos, seja o clone da imagem que emoldurei em amores e reservei na memória. Essa mulher deixaria escapar um sorriso, antigo conhecido meu, e diria que não lhe sou totalmente estranho. Com olhos serenos pelos anos em espera, eu pediria licença para sentar ao seu lado e contaria a história de minha vida.

Não apresentaria ninguém, além do tempo, por testemunha das inúmeras vezes em que freqüentei as platéias dos teatros, numa obsessiva necessidade de dividir os mesmos ares com minha amada. Diria das vezes em que ela, inocente do amor silencioso que lhe cultivava, deixara escapar, sempre na mesma cena, um gesto em minha direção e eu, iludido pela paixão, interpretara como sendo direcionado e propositado. Essa senhora de cabelos brancos saberia então que, aquecido pelos sorrisos que a personagem lançava ao público, meu coração se aninhara entre as esperanças e se mantivera pulsando. Talvez lhe confessasse ainda, sobre as diversas vezes em que ousara percorrer os bastidores dos palcos buscando uma aproximação, porém eu fora vencido antes de completar a abordagem - Ai de mim! Se minha timidez não fosse comparável e mensurável a essa paixão, possivelmente teria conseguido, há tempos, dizer do meu amor.

Talvez ficasse inibido em confessar a anciã sentada diante de mim, o ciúme dos seus beijos em cena. Com certeza não diria a ela que depois do ímpeto carregado de mágoa eu me deixava dominar e voltava, manso e submisso à tirania dos sentimentos, a assistir a trama. Diria da alegria ao encontrar seu rosto exposto nas bancas de jornal e da coleção de revistas diversas com fotos de corpo inteiro. Não! Não. Eu não mencionaria as inúmeras páginas coloridas onde o passar dos anos não fez efeito e a moça ainda me sorri um convite explicito. Eu omitiria os pecados da carne e falaria apenas dos gozos da alma. Disfarçaria o tremor na voz e contaria daquela vez, sentado na terceira fila, onde o sorriso da atriz - não da personagem, veio direto, sem enganos, acompanhado dum olhar afetuoso - Ah!, maldade da fantasia que sustentou esse amor... Eu bati na porta do camarim com uma margarida nas mãos. Triste figura, marionete cujas linhas eram sustentadas pela emoção. Mudo e estático percebi apenas que alguém me tirava a flor deixando no lugar uma foto autografada. Seria agravo dizer que numa dessas pontes aérea perseguindo os perfumes da mulher amada eu perdi o tesouro assinado por ela? Eu não poderia justificar a foto perdida, mas poderia acrescentar a veneração enquanto esteve comigo. Ainda com a voz vacilante diria que minha melhor lembrança de proximidade estaciona nessa troca de margarida por um tesouro venerado... e depois perdido. Nessa hora a emoção me embargaria a voz e, já sem coragem de continuar minha história, eu evitaria até mesmo respirar alto, mas seria surpreendido (não é loucura imaginar) por um indício de alegria iluminando os olhos da bela senhora. Ela diria que se recordava do vaso com a margarida solitária, recebido numa noite em que se encontrava especialmente sensível a gestos singelos. Diria que solicitara a presença do autor de tão afetuosa admiração, mas a camareira já o despachara com uma foto autografada. Outro sorriso, meu velho conhecido - este com um vestígio breve de amargura, surgiria em seus lábios. Nós nos daríamos às mãos numa cumplicidade típica de velhos amigos que o destino se encarregou de manter afastados. Olhos nos olhos, sem mais necessidade de palavras, este seria o momento ideal. Eu ouviria ao longe uma melodia crescente, talvez Cartola cantando sobre as rosas, e saberia que minha hora havia chegado. Eu poderia morrer.

Se por algum motivo eu desse ouvidos aos meus amigos, tolos, e direcionasse a paixão para a moça nua na capa de revista, meu amor não resistiria à visão de outra sex simbol estampando a próxima edição! Só me bastaria desejar e esperar a revista seguinte, o corpo do mês, e as paixões se sucederiam breves, inconstantes e volúveis como as fogosas mulheres de calendários. Não quero sentimentos soltos em meu coração. Eu estaria fadado ao sofrimento das paixões efêmeras sem a esperança de um encontro... Convém permanecer nesse amor possível.