NUNCA
MAIS VOU SAIR DE DENTRO DE MIM
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Aline
Carvalho
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Eu nunca mais vou sair de dentro de mim. Não é porque a gente sai na rua e vai cruzando com os tipos mais suspeitos do mundo: o menino de bermudão largo, corrente no pescoço, boné virado para trás, na verdade multiplicado por dez, aquele bando andando como se dançasse, como se dançasse uma dança funk, ou rap, ou outra coisa qualquer em linguagem de pagão. Não é porque atravessar a rua não adianta, e o menino multiplicado por dez quer a minha bolsa ou riscar no meu rosto as suas iniciais a canivete ou apenas me dar uma surra... não é por isso que não vou mais sair de dentro de mim. Não é porque a gente lê o jornal ou vê televisão e vai se revoltando com os tipos mais cínicos que aparecem no noticiário, aqueles que queriam o poder, e queriam mantê-lo a qualquer preço, aqueles cuja ignorância avassaladora provoca náuseas, aqueles que acham que não temos miolos e que, em não os tendo, não teremos vontade de estourá-los ... não, não é por isso que eu vou permanecer dentro de mim. Não é porque a gente pára no sinal e vai vendo toda espécie de miséria passar pela nossa janela, aquelas criancinhas malabaristas e engolidoras de fogo e de sapos, aquelas balinhas em pacotes no retrovisor, aquele pano que suja o nosso vidro... Não é pela miséria que nós vemos, mas que não nos vê, refletida apenas no insufilm mais escuro que pudemos encontrar e que, por isso, não consegue fazer de nós um alvo exato quando, com gestos da malabarista que é, atira às cegas, usando contra nós a própria arma que carregávamos... mas ainda não é por isso que vou continuar dentro de mim. Não é porque a gente seja passional, e vai lendo todos aqueles e-mails e scraps de mulheres desconhecidas, sempre belas e desejáveis nas fotos virtuais, sempre virtualmente disponíveis varando a madrugada do nosso varão, até que a de repente, num dia de TPM, louca e inconseqüente, a gente resolve o problema de uma vez por todas, sem saber como viver com aquilo depois da trégua hormonal e o que fazer com a arma (mas ainda não é por isso que não vou me mudar de dentro de mim.) Não é porque o meu time perdeu e eu quero botar fogo em todos os ônibus que cruzarem o meu caminho e quero ficar cega com a visão da camisa do time adversário e nem é porque o meu time ganhou e eu quero me defender da ola inimiga avançando na minha direção, que só terá sua sede de gol saciada com sangue... ainda não é por isso que nunca mais eu vou sair de dentro de mim. Não, não é por nada disso. É só uma questão de insegurança. Pública. |