O VAMPIRO DE FORTALEZA
Raymundo Silveira
 
 

"Ce qu'on aime avec violence finit toujours par vous tuer".
(Guy de Maupassant: La Nuit)

Devia calar, mas não ouso. Abomino o silêncio como quem sente terror de um enterro prematuro. Me comporto tal qual um criminoso impune cuja glória é se vangloriar da própria impunidade."Vai chover: o céu tá tão preto!" "Mais preta, desgraçado, está a tua alma no Inferno". Foi um sonho quase real... Me preocupei por uns tempos. Depois esqueci. Em um mundo colonizado por palavras acordadas, seria insensato deixar-me impressionar por meia dúzia de vocábulos adormecidos. Poucos meses mais tarde voltei a sonhar: "Vai chover: o céu tá tão preto!" "Mais preta, desgraçado, está a tua alma no Inferno". Era católico, cumpridor dos deveres religiosos. Confessei-me. Confessor: Não vejo motivo para preocupação. Sonhos acontecem. A ciência já demonstrou... Não houve ciência nem meia ciência: continuei a ter o mesmo sonho. A escutar a mesma voz pronunciando as mesmas palavras. Passei a atribuir às minhas confissões sacrílegas. Não tinha coragem de contar um vício terrível: a prática do sexo oral. Voltei a me confessar e, desta vez, disse tudo. Fui absolvido e prometi nunca mais esconder pecado algum. Sob pena de a absolvição se tornar inválida. Vá em paz e não tornes a pecar. Pequei. Precisava pecar. Nunca fui amado. Quando amor inexiste, sexo é o lenitivo que subsiste. Amargura infinita. Sensação de me encontrar sozinho num deserto, sem nada, no rumo de nada. Doía-me a ânsia do absurdo, precisamente por ser absurdo. Pungia-me a impossibilidade de ser outro, exatamente por não ser possível. E os sonhos continuaram. Um amigo me levou a um Centro Espírita. A amizade sem interesse é rara, mas acontece. E quando se manifesta deveria comover o coração daqueles que só provaram a mesquinhez das falsas amizades. Descobri que não há pecado. Nem Inferno. Os sonhos seriam espíritos malignos. Prometeram exorcizá-los. Deixei a Igreja Católica e me tornei espírita. Continuei a praticar a aberração. Só que a minha era mais aberrante do que as "aberrações normais". Os sonhos prosseguiram e viraram rotina. Quase não os temia mais. Os hábitos se modificaram. Abandonei o espiritismo e me envolvi com a magia negra. Durante os rituais havia sacrifício de animais. Me tornei especialista em matar galinhas pretas, enquanto bebia o sangue. Que descia na minha garganta com a fluidez de uma sinfonia e se ramificava até as ambiências mais recônditas das minhas entranhas. Nutria-me exclusivamente disto. Cheguei a ponto de não me satisfazer mais: comecei a desejar o dos humanos. Especialmente de jovens. Mantive a prática do sexo oral. Percebi que este hábito moderava um pouco a fome. Passei a freqüentar bancos de sangue. Salivava abundantemente ao ver os frascos. Não tive coragem. Eram os anos 80. A AIDS uma peste desconhecida. As transfusões eram feitas sem exame prévio. Medo de contágio. Pressentia também que se bebesse diretamente do frasco não me saciaria. E a vontade redobrava. Numa incerta manhã, ao fazer a barba, o espelho não me refletiu. Pouco depois passei a ter aversão a alho. Mais tarde, a crucifixos. Foi horrível. Incapaz de aceitar o inaceitável. O irreal do que não podia ser real. Desespero. Tive de trocar o dia pela noite. O normal pelo anormal. A vida pela morte. Os atos sexuais se tornaram compulsivos: único refrigério para aquele tormento. As parceiras pareciam ou fingiam não desconfiar... Tentei o suicídio várias vezes. Fracassei em todas. Não sentia medo de morrer. As tentativas eram concretas, mas não se consumavam. Sentia-me um hiato maldito entre o que não fui e o que serei. Despido e disperso, cogitei desesperado: nasci sem pedir e morrerei querendo ou não. O mais irônico de tudo é querer e não poder. Descobri, aterrorizado, que para criaturas como eu, somente um método funcionaria: a transfixação do coração por uma estaca pontiaguda. Jamais ia conseguir... A dor seria insuportável... O golpe tinha de ser rápido e certeiro. Exigia frieza sobre-humana, mesmo se a vítima fosse outra pessoa. A ânsia de sangue se tornou incontrolável. Como só aliviava através do coito oral, passei a praticar sexo grupal. Duas prostitutas numa praia. Noite sem luar. Orgia. Surgiram assaltantes. Tive de correr. Corri para o amanhecer. Mais tarde soube que as duas foram violentadas e, depois, assassinadas através de facadas nos órgãos genitais. Não foi difícil me localizarem. Excetuando a covardia, não fui acusado de crime algum. Álibi perfeito. Houve um período em que as mulheres passaram a tomar pílulas anticoncepcionais numa quantidade assustadora. Fenômeno paradoxal: a diminuição da libido foi minha, não das usuárias. Mas a avidez de sangue triplicou. A obsessão por jovens voltou a me atormentar. Passei a rondar escolas noturnas. Havia uma dificuldade suplementar: como identificar quem me interessava, de fato. Espreitei banheiros, revolvi refugos, observava hábitos... Corria perigo. Então, tive uma idéia melhor. Disfarcei-me de parteiro... Algumas casas de parto me aceitaram, pois eu não exigia qualquer direito trabalhista. Só me alimentava quando me deixavam sozinho com as parturientes anestesiadas... Escolhi plantões noturnos, quando médicos e enfermeiras cambaleavam de sono. Preferia sempre os partos mais complicados, demorados e onde houvesse possibilidade de maior hemorragia. As de primeiro filho eram minhas... Só minhas. Esta foi a única exigência: precedência sem cedência. Ó madrugadas ternas, maternas. Ó maternais maternidades... As noites passavam as horas esperando o dia e o fim dos meus repastos. E eu passava os dias esperando passarem as horas para repastar à noite. Enquanto isso, o tempo preguiçava e me enchia de tédio. A perspectiva do declínio das tardes era o único alívio. Bêbado noturno, cuja ressaca diurna só amainava ante a expectativa da próxima bebedeira. Não me julguem por antecipação. Meus princípios religiosos não permitiriam praticar atos abomináveis contra um semelhante. Consumia aquele sangue por imperiosa necessidade. Agia como se comungasse. 24 de Dezembro de 1988 em mim e na folhinha da parede. Um sábado. Maldita noite de Natal. Duas primíparas mal iniciando o trabalho de parto. Todo o pessoal louco para passar em casa a meia noite. Deixaram-me sozinho. Me senti num festim romano. As duas evoluíam normal e lentamente. Quando a dilatação alcançou os oito centímetros, pus em salas vizinhas. Apliquei as anestesias como se bebesse um aperitivo. Jamais tivera uma ceia natalina tão farta... Dei o talho no vinte pras oito de cada uma. Nasceram os bebês. Preste o banquete. De súbito, entrou o diretor. A perplexidade o deixou mudo por uns instantes. Logo se recuperou. Retire-se! Sou forçado a abafar, em nome da reputação desta casa. Nunca mais ponha os pés aqui ou em qualquer outro hospital. Será preso imediatamente. Não haverá condescendência. Embora tenha o diploma cassado, hei de denunciá-lo... Em meados do ano seguinte um escândalo abalou Fortaleza. O noticiário girava praticamente em torno disto. Uma prostituta vampira fora presa. Fui visitá-la. Reconheci-a de pronto. Tínhamos tido uma relação oral pouco tempo antes daquele primeiro sonho. E do desejo insaciável de sangue. Então, descobri a origem do meu mal. Eu só fazia sexo com mulheres menstruadas... Ou paridas...

 
 
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