VIDA
NA SOMBRA
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Mauro
Darcy Spinato
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O relógio da estação marca dezoito horas. As portas do trem abrem e ele entra. É o início da linha, ele está sozinho no vagão. Magro, pequeno e esquálido, tem um olhar baixo que transmite uma tristeza profunda, impenetrável. A cada estação que passa os vagões do trem vão enchendo-se cada vez mais. Antes de chegar à estação do centro não há mais lugar, ninguém se mexe. Gérard, esse é o seu nome, está preso entre a parede do fundo do vagão e o gordo suado. O calor está forte e junto com o cheiro do suor ele sente o cheiro do sangue a andar nas veias. Gérard é um vampiro, o último deles. Em 1732 vivia em Paris onde foi capturado bêbado numa viela e transformado em vampiro por um cientista da época em busca da imortalidade. Ficou anos trancafiado num calabouço onde servia aos experimentos do cientista. Quando o Dr. Delanoe foi morto por uma de suas cobaias ganhou novamente as ruas. Dos anos de experiências do Dr. Delanoe, doze seres dependentes de sangue aterrorizaram a Europa. Os vampiros foram caçados e exterminados, restando apenas Gérard. Ele manteve-se discreto, conseguindo o sangue que necessitava sugando nos pulsos de prostitutas e bêbados que encontrava caídos pelos becos de Paris. Demorou alguns anos para entender o que lhe acontecera. Sabia ser dependente de sangue mas não imaginava que o Dr. Delanoe houvesse tido êxito e descoberto a fórmula da imortalidade, ainda que por meios tortos. Somente quando alguém perguntou porque não envelhecia deu-se conta da situação. Decidiu, então, que precisaria tornar-se um nômade de grandes períodos. A hora de desaparecer de um lugar era sempre precedido da pergunta: - Você não envelhece? Morou em dezenas de cidades européias. Sempre discreto, assistiu a caça e extermínio de seus iguais. Na metade do século XIX, quando já passara dos cem anos, deixou de ver vantagens na imortalidade. O tédio e a depressão eram uma constante na sua vida. Vivia em sub-empregos e já conhecia grande parte do continente europeu, por conta de suas mudanças. Corriam, na época, incentivos à emigração e colonização das terras americanas. Em 1888 embarcou no porto de Gênova rumo ao Brasil. Em meio ao Atlântico um passageiro dá o alarme: - Há um vampiro no navio! Um início de pânico se estabelece e todos seguem para o convés, inclusive Gérard. O passageiro que deu o alarme mostra o pulso e diz que quando acordou estava sangrando com os dois orifícios abertos. As lendas ditam que os vampiros não suportam o sol, com base nisso o capitão do navio ordena que todos fiquem no convés. Como ninguém derrete sob o sol é feita uma busca minuciosa nos porões da embarcação, sem que nada fosse encontrado. Gérard apresenta-se como enfermeiro e pede para examinar o pulso mordido. Esperto, diagnostica a mordida como sendo feita por um rato, o que foi aceito imediatamente pelo comandante, que não queria tumultos em seu navio. Gérard se oferece para cuidar do ferimento de Luigi. Convence-o que precisará drenar um pouco de sangue todas as noites para que a doença do rato não se instale em seu corpo. Luigi nunca chegou ao Brasil, morreu um dia antes vítima da "peste", apesar dos cuidados do enfermeiro francês. Em terras brasileiras trabalhou em várias fazendas e cidades do sul. No início de 1950 mudou-se para São Paulo, a grande cidade, onde pode-se viver muitas vidas. Apesar do progresso, continua entediado com a vida. O trem chega a estação central. O vagão esvazia por um lado e torna encher pelo outro. Daí em diante, até o fim da linha, o vagão ia gradativamente esvaziando. Já pensou em suicídio inúmeras vezes, mas nunca teve coragem, acha que a morte deve doer muito. O trem chega a última estação, ele está sozinho novamente. Quando a escada rolante deixou-o sobre a calçada externa já era noite. Gérard caminhou tranqüilo com sua pequena bagagem de mão e passou por um cinema que tinha em cartaz o filme Drácula. Ri. Acha fascinante a imaginação humana. Pontual, chega as dezenove horas. Entra, bate o ponto, vai ao vestiário, coloca seu jaleco e calças brancas. E o crachá: Gérard Junot - Auxiliar de enfermagem - Turno da noite, o seu preferido. |