FOME
Marcelo D'Ávila

Você acorda e sente aquele vazio no estômago. Reconhece logo a sensação de fome, no mesmo instante em que identifica a noite pela janela. Noite escura, sem lua. A festa de ontem, sexta-feira, foi das grandes, a dor de cabeça denuncia. Você resolve, então, descer até a despensa. Com certeza encontrará alguma sobra de festa. Merda. Está vazia. Os convidados não fizeram cerimônia. Apenas duas garrafas de um Cabernet Sauvignon chileno e mais nada.

Você não vê outra saída a não ser sair para um lanche rápido. Na noite de sábado não será difícil achar o que comer. Gira a chave de seu Cherokee sentindo a dor nas entranhas. Merda. Quase não lembra do que fez ontem, mas obviamente bebeu muito e quase não se alimentou.

A luz dos faróis de milha separa a estrada à frente em duas serpentes brilhantes. Você sorri ao pensar em Moisés abrindo o Mar Vermelho. Analogia idiota. Por vezes, amaldiçoa a si mesmo por ter escolhido morar fora da cidade. Qualquer imprevisto como esse e é preciso fazer uma viagem. Merda.

E então, na curva, você o vê. Os sóis artificiais do jipe iluminam a face magra, pálida. O braço erguido à altura do peito, o polegar apontando a direção da cidade. O gesto universal dos caroneiros. A surrada mochila às costas completa o personagem. Você reduz a velocidade, avaliando o outro, seu aspecto inofensivo. Por que não? Estaciona junto ao acostamento, destravando a porta do carona. Vai para a cidade? Na falta de melhor destino, responde o outro. Entre, eu te levo até lá.

O caroneiro agradece, jogando a mochila no banco de trás. Importa-se se eu fumar? Isso pode te matar, você ironiza. Não parece uma recusa. O outro sorri e acende um cigarro. Na tênue luz que emana da brasa, você perscruta o semblante de seu convidado. Tem um ar cansado que denota uma idade bem superior à que aparenta. Voltando pra casa? De certa forma, responde o outro, minha casa é onde estou no momento. Cara estranho.

Súbito, à direita, surge o clarão da cidade próxima. A fome aperta. O outro se distrai cantarolando uma ária do Turandot. O estômago se contrai, a barriga dói. Merda. Você observa o pescoço pálido do homem a seu lado. Não é lá muito apetitoso. Mas a fome. A cidade aproxima-se. Tem que ser agora.

Você freia bruscamente o jipe, jogando-se sobre sua presa. Estranhamente, o outro não reage. E deixa que você crave seus caninos famintos no pescoço descarnado. A fome. No entanto, os dentes pontiagudos não encontram o que você esperava. Na verdade, não encontram absolutamente nada. Nem carne nem sangue. Nem matéria.

O outro abre calmamente a porta, pegando a mochila e jogando-a novamente sobre os ombros. Ao seguir caminhando pelo acostamento, ainda volta a face para você e sorri. O estômago dói, as entranhas rugem.

Merda.

O filho da puta já estava morto.

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